sexta-feira, 22 de abril de 2016

NOVA DIRECÇÃO DA UNIÃO DOS ESCRITORES ANGOLANOS


TOMOU POSSE NO DIA 21 DE ABRIL DE 2016


PRESIDENTE DA MESA DA ASSEMBLEIA GERAL
RODERICK NEHONE

VICE PRESIDENTE
FRAGATA DE MORAIS

SECRETÁRIO 
AGUINALDO CRISTÓVÃO

PRESIDENTE CONSELHO FISCAL
ÁLVARO MACIEIRA

SECRETÁRIA
MARTA SANTOS

SECRETÁRIO GERAL
CARMO NETO

SECRETÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO E FINANÇAS
DAVID CAPELENGUELA

SECRETÁRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
JOSÉ LUÍS MENDONÇA

SECRETÁRIO DAS ACTIVIDADES CULTURAIS
POMBAL MARIA

SECRETÁRIA ADJUNTA DAS ACTIVIDADES CULTURAIS
AMÉLIA DALOMBA

SECRETÁRIO DAS ACTIVIDADES EDITORIAIS 
CARLOS FERREIRA

sábado, 9 de abril de 2016

A DANÇA DA CHUVA



CAPÍTULO PRIMEIRO

A ficção consiste não em fazer ver o invisível,
mas fazer ver até que ponto é invisível
a invisibilidade do invisível.
Michel Foucault - Filósofo


 A Rua da Vaidade sempre fora a mais curta e desalinhada daquele bairro de Luanda. Nascera, ainda a cidade capital poderia ser considerada um pequeno burgo em relação aos padrões actuais. Tinha umas vinte casas construídas a esmo por emigrantes portugueses pobres, que mantinham nas traseiras das mesmas várias hortas de onde retiravam parte do sustento. Ninguém se recordava se alguma vez tivera nome, porventura não, nem rua propriamente fora, no máximo um esboço de passagem que ligara a uma quinta mais abaixo.
Não tinha passeios, embora se notasse que uma vez os tivera, e apenas duas árvores, uma figueira bastante velha no princípio, e uma acácia, igualmente velha, no fim. O nome actual adviera da esperança de que um dia a vida se encarregaria de desmentir a condição de indigência que se lhe pespegava à volta. Impunha-se nas poças de água mal cheirosa, que timidamente vomitavam o excesso de imundice acumulada para uma estreita vala aberta por residentes mais cônscios daquilo que apodrecia à frente de suas casas.
Enquanto ostentou este nome, acreditei ver nela uma certa majestade, até o mais pobre dos pobres pode ter porte e postura reais. Se os moradores que a baptizaram se sentiam vaidosos, só podia simpatizar com esse sentimento. Muitos há, que julgam o livro pela capa ostentosa que o encerra.
Se me pudesse falar, por certo que me descreveria as manhãs cálidas em que o sol se espraia pelos charcos fedorentos que rejuvenescem a velha figueira e acácia. Passaria as mãos pelas ancas de sua sinuosidade, virada Afrodite tropical, e me segredaria das noites escuras sem a luz daquela lua africana virada enorme bola amarelenta no firmamento. Achei que, quando por ela passava, me atapetava o caminho por entre os charcos, me revelava os buracos-armadilhas de suas entranhas, e oferecia belas ratazanas para me servirem de guia, as mais eficientes funcionárias de um protocolo profissional, esbeltas e longilíneas, de guinchares curtos, vem por aqui, cuidado com aquela água ali, salta esta pedra, cautela não tropeces.
Havia nesta rua, mais ao menos no início, uma casa que destoava completamente do resto por ter um primeiro andar, rachado e de cor imprecisa, com janelas de madeira meio apodrecidas. Para uns, segundo vim a saber, era a casa do medo, sobretudo para as crianças porque, diziam, vivia lá uma bruxa com um gato rameloso e que à noite ouviam-se gritos que pareciam o piar de um mocho ou de uma coruja, roçando pelos telhados fora, como um vento quente portador de sons misteriosos.
Uma vez parei à sua frente para a observar, tinha uma luz interna acesa, todavia não distinguia gente a movimentar-se no seu interior. Retribui-me o olhar, quase com desdém, senti. Olhava para mim pelas suas duas janelas entreabertas, estática, como natureza morta que algum pintor macambúzio tivesse transferido para uma tela amarelenta e percebi que cantava. Escutei e não tive a menor dúvida, cantava, não com palavras, mas com o soar melódico do ranger das tábuas e dobradiças podres das janelas, produzindo uma melodia estranha que se fazia ouvir pela rua adentro, e que ninguém parecia ligar. Com o carro parado à berma do passeio, motor desligado, baixei as janelas e escutei, hirto, não fosse espantar o vento, esse fantasma compositor e maestro que regia tão bela sinfonia. Era um estranho fluir de sonoridades, tanto ressoava um violino pela chaminé esburacada, como um oboé no ranger de dobradiças enferrujadas, seguido da bateria no agreste bater das janelas agora abrindo e fechando-se, finalizando com os graves de contrabaixo dos portões enferrujados a ondear para trás e para frente num abre e fecha sereno. Quem produzia este pranto musical, que suavizava a putrefacção à volta? É verdade que quem canta seus males espanta, percebi.
Não tive a menor sensação de espanto ou surpresa, foi como se todos os dias tivesse ouvido esta sinfonia e que não era o único, a rua inteira também a ela se vergava, mas foi sol de pouca dura, pronto ouvi o escárnio no grito da voz feminina.
- Posso ser maluca, mas tenho boa memória. Rua, fora daqui e não ponhas mais cá essas patas!...
- Mas…
- João, rua já te disse, desaparece-me da vista imediatamente.
A melodia cessou abruptamente com o despautério da mulher, e tibiez da resposta do homem, o medo ora instalado. O vento, por certo o artífice e regente desse prodígio, evaporou-se célere, acanhado e ofendido pela insensibilidade de quem gritara. Pareceu-me então entender, em lamento, um longo suspiro de desânimo da rua, por se ver obrigada a retornar à sua vaidade miserável intrínseca, vencida, rendida à imundice que se lhe colava pelo corpo sinuoso esperando que um dia lhe mudassem o nome ou a fisionomia.
Elevei os vidros do carro e parti, desconsolado. No rádio, Elton John cantava Oceans Away, do seu último CD, The Diving Board. Subi ligeiramente o som e dirigi-me a casa, meio triste.
Vivo num apartamento de três quartos no centro da cidade, num segundo andar, em zona que sofre pouco com cortes de energia ou falta de água. Pago regularmente uma pequena maquia a um jovem que se ocupa do levar para cima as compras, botijas de gás, jerricans com a água indispensável, por não possuir um reservatório e motobomba.
Parqueei a viatura no espaço sob a árvore em frente à porta principal do prédio, que me estava oficiosamente reservado por direito de antiguidade. Por hábito, ao sair do carro, em jeito de saudação interior, pensava quantos pássaros teriam sido comidos pelos gatos ou mortos por pedrada certeira da fisga de uma criança. Precavido, rogava-lhe que me concedesse mais uma noite sem que nenhum dos galhos se desprendesse pela força do vento e me arruinasse a viatura, que tanto me custara adquirir.
Acendi os candeeiros da sala, coloquei na aparelhagem um disco antigo de jazz, Billie Holiday, e quando os acordes de Strange Fruit se fizeram ouvir, o piano entrando gentilmente, quase inaudível, preparei um gim tónico não muito forte e sentei-me para rever o dia, no desfrute de um momentâneo dolce fare nienti.
Acabei por sentir fome e fui à geleira buscar o resto da piza de mortadela e queijo que deixara da véspera. Coloquei-o no micro ondas, mesmo sabendo que mastigaria algo parecido a borracha. Não me sentia motivado para descer, ir à esquina comprar um hamburger ou outra coisa qualquer.
Quando se vive sem companhia, a existência por vezes não é muito agradável ou saudável, não obstante apreciar a solidão. A esposa, melhor dito a ex-esposa, fartara-se da minha passividade e atitude poética para com a vida, e abandonara-me, trocando-me por um famoso jurista, bom papagaio, com ideias assentes em ludibriar os incautos que acabariam por torná-lo mais rico, não tenho dúvidas. Um dia, assisti a um advogado criticar o filho, igualmente advogado, que se vangloriou de ter ganho aquela causa em que o velho trabalhava há dez anos.
- Seu idiota, esse era o processo que nos sustentou durante estes dez anos. - Vociferou.
Se pudesse, indagaria junto a São Pedro se haveria algum causídico no céu. Aposto que não, e se houver, será porque provou e comprovou irrefutavelmente ao porteiro celestial que dois mais dois são cinco. E graças a isso, certamente que viverá na maior casa do melhor e mais nobre bairro do Paraíso, logo à entrada do portão celeste, tem vários carros topo de gama, criados, jardineiro, lavadeira e motoristas full time.
Como nunca houve filhos pelo meio, pouco nos vemos, não havendo pontos de ligação a partilhar. Vou sabendo dela por alguns amigos ainda comuns, que vão voluntariamente me informando. Sei que está grávida, o que me deixa bastante feliz, este também fora um dos motivos que contribuíra para a separação, não me sentia e nem me sinto voltado para o desempenho do papel de pai. Pai é profissão sem diploma ou certificados passados, e que se vai aprendendo à medida do tempo. Não há licenciaturas, mestrados ou doutoramentos. Finalmente quando sentimos que somos pais, é tarde demais, as crianças cresceram e bazaram de casa, umas a bem, outras a mal. E quedamos-nos o resto da vida em lamúrias inúteis, ai se eu soubesse, por que não fiz assim ou assado, onde é que falhei ou errei, nunca lhes faltou nada, ingratos. Tentamos emendar com os netos, mas aí os pais rebelam-se, nós é que sabemos educar os nossos filhos, olhem o que fizeram de nós, e o ciclo repete-se.
O soar da campainha de aviso do micro ondas trouxe-me de volta à sala. Retirei o prato com a pizza-borracha e sentei-me novamente. Entretanto Strange Fruit chegara ao fim e Yesterdays preencheu a pequena sala. Yesterdays,  yesterdays… golden days, numa voz suave que reverberava das paredes e invadia a alma, a voz de uma vida curta e atormentada. Billie Holiday.
Enquanto mastigava a piza-borracha, alheio à sua dureza, que ia empurrando com goles de gim tónico, olhei para o quadro na parede da frente em que um velho, dentro de uma cubata, fumava tranquilamente a sua pequena mutopa. Tinha o quadro há tempos, nem me recordava onde e quando o adquirira, sempre esteve ali, imóbil e tranquilo, a maior parte das vezes quase invisível. No parapeito da janela, três bonsais que cuidava há quatro anos.
A voz suave de Billie Holliday, relembrando os yesterdays, os ontens de sua vida caótica, transportou-me ao local onde minha mãe enterrara o umbigo deste seu terceiro filho, no sul de Angola, numa minúscula povoação comercial, ao longo do caminho-de-ferro, Vila Nova, nome pomposo que o primeiro comerciante colocara na sua loja-residência. Quando foi aberta uma estrada, que passava não muito longe, começaram a aparecer mais comerciantes para trocar ou comprar o mel, o milho, a massambala, a batata, por lamparinas, candeeiros  petróleo, açúcar, sal, sabão, panos, sobretudos, calças e camisas, entre outros artigos.
Tive uma infância normal. Numa povoação pequena do interior, nunca se tem aventuras para além daquele globo minúsculo e fechado que nos enreda. Mesmo quando as elevamos a outros patamares, em viagens por espaços siderais, logo se cai na realidade da vida pacífica e monótona que desfila com muita impaciência à nossa frente. Para uma criança, o tempo é o seu pior inimigo.
Pelos raros filmes que me permitiam ver, quando por lá passava o cinema ambulante do Sousa, uma carrinha com um gerador e o pesado projector de trinta e cinco milímetros na carroceria, um altifalante no tejadilho para anunciar pelas povoações circundantes que mais tarde haveria cinema, fui aprendendo coisas que nunca me seriam ensinadas de outra forma. Como fruto gerado a partir de imagens inócuas de beijocas melífluas nas fitas de celulose, troquei os meus primeiros ensaios de beijo com Selina, filha de um comerciante vizinho. Acontecia quando conseguíamos escapulir à vigilância dos manos e primos mais velhos, nos passeios pelas redondezas, caçando rolas, perdizes ou lebres. Desaparecíamos momentaneamente por trás de uma moita, e se àquilo se pudesse chamar beijo, então foram os nossos primeiros beijos, o roçar fugaz dos lábios de um no outro, que tanta emoção e perigo carregavam, meus olhos revirando constantemente à cata de alguém que fortuitamente nos observasse. Foram beijos angélicos, sobretudo higiénicos, só muito mais tarde vim a descobrir, maravilhado, o que a língua podia fazer e conseguir.
Quando me fizeram um linguado pela primeira vez, achei a moça desavergonhada, porca… Alguém me deveria ter preparado para estas descobertas, ter-me previamente anestesiado, por outras palavras. Não sei quando dei o pulo de neófito tímido para investigador um pouco mais ousado e, por fim, para perito em vasculhar bochechas e línguas de donzelas, das não tanto e, muito mais tarde, das balzaquianas, ávidas e carentes de aventuras, que fora do romance de Balzaque, são maldosamente apelidadas de encalhadas, numa linguagem náutica deselegante.
Mas nessa altura, o que desejamos é crescer, quanto mais rápido melhor, ser como os adultos e isso, aos olhos de criança, leva uma infinidade. Passa-se, ao que parece uma vida, a olhar para cima. A altura de uma mesa normal trata-nos por tu, chegar ao cimo do armário na sala de jantar, para se roubar umas bolachas, é um gesto temerário de arrojo e malabarismo.
Desde muito cedo senti um ímpeto vertiginoso, diria, para conhecer novos mundos, flutuar uma manhã inteira pelos céus feito águia, cada vez mais alto, conforme as correntes quentes de ar me elevassem. Como era feliz naquela altura, só que não o sabia, pensei, meneando a cabeça ao compasso da música, a meditar se deveria preparar um outro gim tónico.
Decidi que não, e estiquei os pés sobre o tampo da pequena mesa de centro, onde mantinha revistas e pilhas de livros que lia regularmente e com bastante voracidade. A leitura sempre foi uma das minhas paixões, não havia livro a que não deitasse mão, que o meu pai, outro grande leitor, ia arranjando aqui e ali. Quando se deslocava a Benguela ou a Luanda, comprava uma resma deles, passe a expressão. Foi dele certamente que herdei o gosto profundo pela leitura. Muito cedo comecei a ler as Bíblia com a minha mãe, tendo-me maravilhado com os mitos nela contidos e horrorizado com as lendas plenas de sangue e tragédia, sobretudo no Velho Testamento. Quando minha mãe me lia sobre Abraão a querer imolar o filho, quase que fazia xixi nas calças. Ela pronto notou e passou a escolher o que lia, já não folheava o Livro página a página, escolhia os trechos que sabia que me agradariam. Com fascínio, aventurei-me pelas Vinte Mil Léguas Submarinas, pelas Mil e Uma Noites, onde me rendi encantado aos pés e estórias da Princesa Sherazade e nelas acompanhei Aladim e o Génio de sua lâmpada maravilhosa, descobri com o lenhador árabe Ali Baba a prodigiosa caverna repleta de tesouros de quarenta ladrões e calcorreei o mundo nas sete incríveis viagens do marinheiro Simbad. À medida que fui crescendo, descobri Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Castro Soromenho, Luandino Vieira, os Missossos, e não só, de Óscar Ribas. Li tudo que era livro de filosofia, de ciências da natureza, de história, entre outros, que encontrava. Percorria os diversos atlas escolares, da primeira à última página descobrindo novos e encantados mundos, enfim, acho que o meu autodidatismo cultural não me serviu muito para ganhar dinheiro, mas forneceu-me uma bagagem de vulto e da qual muito me orgulho, que foi crescendo permanentemente ao longo dos anos. Aliás, já no secundário, era apelidado de O Leituras, alcunha que felizmente não pegou, não aprecio alcunhas, talvez por inibição da maioria que não lia e a quem eu chamava de analfabeta, em contrapartida.
Billie Holiday emudeceu, a música chegara ao fim.
Deixei o silêncio abater-se pela sala, penetrar em cada poro das paredes, coçar-se pela poeira cabeluda dos móveis, esgueirar-se por baixo dos tapetes, mas os ténues sons da noite ocasionalmente se sobrepunham. A buzinadela ocasional de um carro, o silvar dos morcegos que às vezes entravam pela casa quando me esquecia de uma ou outra janela aberta e, então, o penetrar de uma música que mal se apercebia, que nunca soube de onde vinha. Conseguia apenas entendê-la, suave, como que oriunda dos confins do mundo, por vezes parecia-me um lamentar numa flauta, outras, um choro num clarinete, implorando por ajuda, por reconhecimento. Era música de um outro mundo tinha a certeza, diluía-se pelos meandros do meu pensamento, escorria pelos meus ouvidos feita catarata silenciosa que se espraiava no meu regaço e, por fim, pelo chão do apartamento, tudo inundando numa sensação de paz e harmonia.
Seria por acaso o vazio do lar, a solidão com a qual compartilhava as longas horas da noite? Estaria o apartamento assombrado, alguém lá morrera e ainda buscava a paz eterna, ou simplesmente o vento a penetrar por qualquer fresta das janelas ou das portas? Ou era um mero filamento da minha imaginação?
Aceitei esse fenómeno como normal, se a casa estivesse assombrada seria por algum espírito que gostava de música e que nunca me perturbara, no fundo até me ajudava na elaboração das matérias que tinha que preparar para o jornal, massajava-me o cérebro e aclarava as ideias. Não havia razão para me preocupar, o que não era do mal, ao mal não pertencia.
Ao pulsar deste passear pela casa do ar vindo das frestas várias das janelas e das portas, se é que a sua quase inaudibilidade pudesse ser chamada de pulsação, ou fosse mesmo um acontecimento movido por forças ocultas benignas, escrevia noite afora minhas dúvidas, meus desejos camuflados em verdades a conseguir, não raras as vezes até às três da madrugada, sempre com o parceiro ao lado, o meu companheiro de lutas e agruras, o gim tónico, a bebida que tomava regularmente.
Não bebia nada mais, a não ser em campos de batalha que não tivesse opção ou voz, em que me era ordenado o comando e ponto final. Se me dissessem só há uísque, não fazia sacrifícios inúteis, uísque seria. Todavia tinha meus pruridos e limitações, não estava aberto a qualquer sugestão considerada por mim de subversiva. Havia marcos para a sede ou para o prazer de beber pelo prazer. A cerveja, colocava-a no patamar das bebidas para tarados de toda a espécie, gente sem paladar e tino ou para quem fosse pobre, muito mais pobre do que eu.
Por norma vejo-me como um homem de esquerda, todavia a proletarização da cerveja arrepia-me. Como entender que seja sorvida copo após copo, quando não caneca atrás de caneca, sem sede, sem apreciação do sabor, fria, morna, quente, já aberta e de ontem, escura, clara, amarela, doce, amarga, pesada, ligeira, enfim, sem qualquer relevância e por cima, com anúncios televisivos que tentam fazer, pelo menos de mim, um papalvo, para não falar dos outros? As cervejeiras que fazem esse tipo de propaganda, que só acontece no nosso mundo subdesenvolvido, deveriam ser levadas às barras dos tribunais por propaganda enganosa, pois a acreditar nos seus spots televisivos, logo nos veríamos rodeados por jovens torneadas a preceito na forja de Vulcão, no mínimo duas ou três, em apertados e minúsculos calções, minissaias ou reduzidos biquínis, quando a cerveja tal fosse consumida, irrelevantemente do local e hora, sobretudo quando não lhe é reconhecida qualquer qualidade afrodisíaca, antes pelo contrário.
Nada a ver com um bom uísque, que sabemos ter dez, doze ou vinte e um anos de envelhecimento em cascos de carvalho, toda uma ciência oriunda de terras montanhosas da Escócia ou da Irlanda com passado milenar e nomes impronunciáveis como Aultiphurst, Loch Gainmmhich ou Killmactranny.
Quanto ao meu fiel companheiro de bem-aventuranças ou agruras, o gim, conheço-lhe a história toda de frente para trás, ou de trás para a frente e às vezes quando abuso, também para os lados num suave bolinar, desde a idade média ou, pelo menos, desde que o médico holandês Franciscus Sylvius, para mim per omnia seculum seculoram santo padroeiro dos gim toniqueiros mundiais, o inventou pelos idos mil seiscentos e tal, a partir de umas pequenas bagas silvestres, de nome igualmente impronunciável, Juniperus Communis. E, deixem-me frisar, que nunca vi, desde essa época longínqua e bendita, qualquer boazuda meio vestida, ou despida, conforme a óptica de cada, introduzida a pressas em cartazes por propagandistas, para o publicitarem e venderem. Tem alma e vida próprias, vale por si só.
Pereceu-me ouvir um novo sopro, uma nova nota de angústia no toque do clarinete, desta vez vindo da cozinha. Concentrei-me, tentando decifrar se representaria o guincho longínquo de um primata das florestas equatorianas, um pio longo de coruja escondida numa mafumeira, ou as janelas a reclamarem da sujidade do pó da rua que as importunava? Por mais que tentasse, apenas o entendia, lúgubre, angustiado. Reverberava suave em curvas ascendentes e descendentes onde me perdia no leve embalo, ora subindo velozmente, ora descendo vertiginosamente como num tobogã de parque aquático onde me vi esparramado, de costas, na água agitada e fresca.
Larguei uma gargalhada de surpresa, nunca na minha estivera num parque aquático, vira-os somente nos programas televisivos, mas a sensação do mergulho na água foi tão real que tive que me apalpar, verificar se não estava molhado e se não havia água no chão. Nada. Tudo na mesma, fora uma mera impressão, seria que o gim tónico tinha alguma coisa a ver? Certamente que não, pois estava habituado a beber muitos e muito mais.
- Vais mesmo ter que arranjar companhia, rapaz! Isso de viver sozinho faz-te ouvir e ver coisas. – Falei alto, dando ênfase à palavra mesmo, levantando-me para ir colocar um novo CD e renovar a bebida, desta vez com bastante gelo e uma rodela de limão nativo.
Já ouvira suficiente jazz, procurei por Carlos Burity, encontrei uma bela colectânea de sembas e coloquei-a a tocar.
Com o copo na mão, sentei-me no mesmo lugar, preparando-me para alinhar na mente a matéria que teria que entregar no dia seguinte a meio da manhã, pretendia recolher-me não muito tarde.
A evocação de Selina e dos beijos trocados na nossa infância levou-me a pensar no que teria sido feito dela, da sua vida, que caminho teria trilhado, por onde andaria? Fez-se sentir na sala, como se tivesse entrado de rompante, apanhando-me desprevenido. Vi-a nitidamente a meu lado, sentada na outra cadeira, estranhamente sem cara, pelo menos não conseguia ver-lhe o rosto, mais parecia uma múmia. Sacudi a cabeça umas duas vezes, até ter a certeza que estava sozinho no apartamento. Tornei a encher o copo com o resto da água tónica e transportei-me para a pequena vila do sul onde nascêramos com um intervalo de dois anos
Selina era uma jovem linda, rebelde, beirando uma agressividade constante, talvez por ter um pai déspota que dominava incondicionalmente o lar. Não foi, pois, de admirar que aos dezassete anos tivesse desaparecido do vilarejo causando uma surpresa e consternação gerais. Assim que a família deu conta que a filha fugira com um biltre, tal o denominaram, foi proscrita do lar quase por decreto imperial. Morta para sempre no coração do pai, que nem permitia a recordação e o pronunciar do seu nome à mãe e aos irmãos. Para todos os efeitos, Selina morrera, mesmo quando, anos mais tarde a família veio a saber que tivera uma união infeliz e que vivia uma vida obscura na cidade capital.
Já licenciado em jornalismo, a trabalhar num dos maiores diários da capital, encontrámo-nos por acaso numa rua da Baixa. Não foi difícil o reconhecimento mútuo, sem saber o que fazer, abraçamo-nos desajeitadamente e procuramos uma cafeteria para a conversa que o olhar dela declarava que se impunha.
Os anos esfumam-se à nossa frente como nuvens multiformes que os ventos formam, deformam e sopram para caminhos que não se escolhem. Um abraço oco que nada representava, um espaço escuro vazio, prenhe de sombras e ziguezagues.
Um dia abalara do vilarejo num silêncio pecaminoso, num jogo de cabra cega com o destino, e hoje, quantos anos mais tarde Deus sabe, encontrámo-nos por mera casualidade. Era-me atirada para a minha vida novamente, e não sei se fiquei feliz por tal. Ressenti a espontaneidade do abraço, a bem dizer mal a conhecia, não mais éramos crianças perdidas num pontículo microscópico do Universo. Melindrado, perguntei-me porque não lhe apertara a mão, mesmo não a tendo ela estendido? Sempre a mania de desejar ser um pouco mais elevado, mais generoso, que me olhem como um nice guy. Muitas vezes me pergunto se isso não é um complexo de inferioridade, uma vontade de ser reconhecido a todo o custo e em todas as circunstâncias, como se tal fizesse de mim um vencedor nato e a quem se distribuí medalhas a granel em reconhecimento.
Sentados à mesa num café de esplanada, pouco dizíamos, havia um embaraço mútuo, quem ousaria tentar o primeiro gesto, lançar a primeira pergunta, talvez fatídica, e abrir-se para o escrutínio da vida do outro? Senti-me como um jogador de póquer, com uma mão de cartas que só dá para blefar, valeria a pena? Decidi aguardar, no fundo, quem teria explicações a dar seria ela, o pássaro que abandonou o ninho e alou voo.
Com o polegar e o indicador da mão direita rodava nervosamente o grosso e estranho anel no dedo anelar da esquerda. O garçon veio e Selina pediu um refresco, tendo eu indicado o mesmo com um ligeiro movimento da cabeça.
Notava-se-lhe a passagem dos anos, certamente agrestes, sobretudo em dois profundos regos cavados em cada um dos lados do nariz meio achatado, a relembrarem riachos abertos pelas águas das chuvas que transportavam o que neles caía, pedaços de folhas putrefactas, gavetos ressequidos, numa imagem forte que reflete os coices recebidos na abertura dos trilhos da vida, no percorrer dos atalhos diversos que jamais se transformarão em avenidas asfaltadas que bordeiam os palácios dos materialmente bem-aventurados da terra.
Seu rosto falou-me sem que o pedisse. Pareceu-me a imagem de um ancião, sentado no seu mocho sob o fresco da mulembeira, deixando que as marcas ardentes do cenho, os talhos nas faces que lhe curaram as doenças e impediram feitiços poderosos e o cansaço eterno dos olhos embaciados e silenciosos revelassem a vida que levara, os caminhos que trilhara, as alegrias e sofrimentos acumulados, no tempo do branco e no tempo do negro. Tal como essa imagem, o rosto de Selina, talvez por indução, revelou-me toda uma estória desconhecida no simples piscar dos olhos, foi como se uma onda avassaladora me tivesse fustigado e senti o desejo súbito de me levantar e partir, sem olhar para trás, não para não ser transformado numa estátua de sal como castigo da minha imprudência, mas sim por não desejar conhecer o que ela teria para me contar.
- O que é feito de ti? – Saiu-me da boca.
Ficou a olhar vagamente, avaliando a sinceridade da pergunta, ou talvez não sabendo por onde começar, ou, quem sabe, ressentindo-se por não ter sido ela a primeira a indagar, teria evitado falar da sua pessoa logo de início. À partida, teria usufruído da vantagem de saber da minha vida e, talvez por aí, tentar conhecer o que eu saberia da sua. Levou o copo à boca, sorveu lentamente e colocou-o sobre a mesa, mas agarrando-o, acariciando-o no rebordo, com o dedo indicador da mão direita, enquanto pensava. Olhou para o lado, seguindo a voz alta de duas jovens que passavam. Colocou ambas as mãos em cima da mesa, com os dedos entrelaçados e olhou para mim.
- Por acaso fumas, estou sem cigarros?
Fui apanhado desprevenido, devo dizer. Esperava algo diferente.
- Não, nunca fumei. – Menti.
- Pois eu sou uma viciada, fumo dois maços por dia, sinto-me menos nervosa, menos ansiosa. Poderias comprar-me um maço?
Chamei o garçon, indaguei se vendiam cigarros e à sua anuência pedi que me trouxesse um maço, que Selina logo se encarregou de fornecer a marca e acender um cigarro assim que chegou, não obstante o meu indisfarçável desagrado. Tossi várias vezes para reforçar, todavia se ele notou não deu mostras de tal, antes pelo contrário, inalou profundamente tendo, pelo menos, o cuidado de expelir o fumo para o lado.
- Já me sinto melhor. Admiro os não fumadores, nunca seria capaz de passar uma hora que fosse sem fumar, no dia que alguém me queira torturar, é tirarem-me o tabaco.
- Não é tanto assim, de facto a nicotina cria uma dependência mas superável, é só desejar. - Respondi.
Ainda que contra a minha vontade, um outro desejo interior começava a brotar, a manifestar-se. Pretendia saber o que fora a vida dela desde que abalara há anos. Uma menina do interior não desaparece sem deixar rastos, sem que ninguém tivesse jamais notado os indícios, as pistas. Por certo não sumira sozinha. Fugira com alguém que ainda hoje eu desconhecia e com a vinda da minha família para a Luanda, o assunto esvanecera por completo. Havia pois uma curiosidade crescente à medida que a contemplava. Tinha que a ouvir, saber os caminhos que cruzara para chegar a mim, naquele momento em que esboçávamos uma tentativa de conversa, de aproximação mesmo.
Olhou-me durante um longo tempo, suspirou fundo.
- Obrigado.
- Por quê? – Indaguei, sem perceber o agradecimento.
- Pelos cigarros, salvaste-me a vida, nem imaginas.
Nunca poderia imaginar que um cigarro salvasse a vida de alguém, sobretudo depois de ter visto em muitos filmes e lido em muitos livros, que o último desejo do condenado à forca, à guilhotina ou ao fuzilamento seria fumar um cigarro.
O agradecimento de Selina fez-me visualizar um reclame que carregaria uma imagem potente. Imaginei o condenado a terminar o seu último cigarro, o laço a ser-lhe colocado à volta do pescoço e despencar para a morte. Logo após, numa dissolução de cena, surgia um maço de cigarros e, sob o fundo de uma música suave, sobrepunha-se uma voz feminina melodiosa a anunciar que o condenado, como último desejo, fumara a marca tal. Todavia a realidade nesse mesmo reclame talvez fosse outra, ao fim do cigarro, o condenado que achara valer a pena mais alguns minutos de permanência na terra, lá partia desta para a melhor, a beata caída no chão, ainda acesa e fumegante, quem sabe simbolicamente revelando que a vida continua e que ali só se acabara com um homem. Terminado o macabro espectáculo, saciadas todas as emoções da multidão que assistira ao acto, poderia aparecer um vagabundo que apanhasse a beata, exaurindo sofregamente os últimos consolos do morto através dela.
Considerei que não valia a pena falar-lhe disso. Se lhe salvara a vida, segundo ela, melhor. Seria mais uma boa acção a meu favor, na página do livro dos tidos e havidos no julgamento final.
O sentimento de gratidão revelado pela compra do tabaco, talvez a levasse a uma maior sinceridade no que desejasse relatar. O facto de não ter dinheiro para comprar um maço de cigarros não me deixara muito à vontade, apontava para a possibilidade de tentar criar uma dependência, fosse qual fosse, embora, no fundo, não significasse absolutamente nada. Só iria até onde eu permitisse, poderia ser que até tivesse dinheiro consigo, que não estivesse desprevenida como insinuara, mas visto uma oportunidade de economia.
Acabei a bebida, e reparei que o copo dela ainda estava meio cheio.
- Não foi nada, estou certo que a tua vida vale muito mais do que um maço de cigarros. E por falar nisso, os teus pais?
Tossiu, não sei se do cigarro ou se por nervosismo. Não me olhou. Baixou ligeiramente a cabeça, agarrou no copo e sorveu a bebida até ao fim.
- Posso pedir um outro refresco?
- Claro que podes…
- Obrigado, estou cheia de sede, não sei porquê.
- Mas os teus país? – Insisti, rudemente, como a marcar território.
- Acho que ainda lá estão, não sei de nada, nunca regressei.
Não acreditei. Que nunca tivesse regressado à terra natal, seria possível e talvez até normal, porém não ter nova alguma da família tornava-se difícil crer. Sempre nos cruzamos com alguém, não se anda pelo mundo como alma penada. Acabara por se cruzar comigo, porque não com outros e que teriam informações, notícias, novidades a dar-lhe sobre os seus, e o lugar de onde saíra tão repentinamente, sem falar da própria necessidade sua de saber dos seus?
- Pudera, da maneira que abalaste!... Sabes, nunca me preocupei muito com isso, cada um sabe de si e Deus de todos, mas agora ao ver-te é natural que me sinta curioso em desejar conhecer o desenvolvimento da tua vida, desde que nos vimos a última vez. Aliás ainda não te contei, sou jornalista, daí esse defeito profissional, o de querer xeretar em tudo.
O garçon colocou o refresco na mesa, o que lhe deu mais uns minutos de reflexão. Pensei que não fosse responder. Saboreou a bebida fresca, acendeu um novo cigarro, atirou com o fósforo para o chão, e só então levantou os olhos, boca semiaberta, como que esperando que as palavras brotassem sozinhas, em chorrilho talvez, o que me levou momentaneamente às quedas de água de Kalandula.
- A minha vida não tem nada a ver contigo. – Respondeu, suave, quase que a medo.
- Não foi o que insinuei, há um passado longínquo que nos liga. Se estou errado, perdoa-me, de facto a tua vida não tem nada a ver comigo…
- Desculpa.
Fiquei à espera que aquele pedido de desculpa tivesse um seguimento, que revelasse uma pequena luz no fundo do túnel, indicadora de que deveria prosseguir nos meus esforços. Voltou ao enrodilhar do anel no dedo esquerdo, roda, roda, roda como se estivesse a dar à corda a um relógio de pulso antigo.
- Não há nada a desculpar, se quiseres falar estou pronto a ouvir.
- Não sei como te contar aqui, o barulho das pessoas e dos carros… Preferia que viesses visitar-me.
- Claro que posso, é deixares-me levar-te aonde vives e combinarmos novo encontro.
O gelo estava a ser quebrado. O facto de desejar mostrar-me a sua casa, embora não tivesse pensado para que lado é que pendia a intenção, já era um passo dado e, para mim, certo. Chamei o garçon e paguei a conta.
Selina não demonstrou grande pressa em levantar-se. Cruzou as pernas por baixo da mesa, tamborilou os dedos no tampo e suspirou tão profundamente que franzi a testa, surpreso. Momentos depois levantou-se, ajeitou a roupa e agarrou na pequena bolsa acastanhada, surrada pelo uso.
- Vamos. – Disse, quase em voz de comando.
- A viatura está um pouco mais abaixo, junto à livraria. - Indiquei com a mão.
Seriam umas onze da manhã e a rua fervilhava de gente e automóveis, num barulho meio ensurdecedor. Jovens por todo o lado a marcar os esparsos lugares de que se assenhoraram para parqueamento de viaturas. Outros oferecendo-se para guardá-las, uns tantos a impingirem qualquer bugiganga para venda e os famintos a pedirem uma nota para a côdea de pão.
Chegámos à viatura e logo o jovem, o suposto guarda, apareceu para receber o que lhe cabia, numa aceitação tácita de ambos. Era raro haver troca de palavras, talvez um obrigado pai, limpei o carro, na esperança de receber um pouco mais, ainda que não lhe houvesse solicitado que o fizesse. Destranquei, com o comando, as portas do meu pequeno Rav4 e entramos, de imediato baixando os vidros para que o ar abafado e quente fosse substituído por uma aragem mais fresca. Só depois ligaria o ar condicionado.
- Para onde vamos? – Perguntei, já que Selina nada dizia.
- Para cima, para os lados do S. Paulo, depois indico-te o local quando lá chegarmos. Posso fumar aqui dentro?
- Acho que não, teria que baixar os vidros e desligar o ar condicionado. Certamente que aguentas até lá chegarmos, não?
Olhei de soslaio para antever sua reação, e quando notei que não levara a mão à pasta onde guardara o maço de cigarros, respirei de alívio.
- Claro que aguento, não te preocupes. E para que jornal trabalhas afinal?
- Para um dos nossos maiores diários, o Ecos do País. Já lá estou há três anos, ocupo-me da área social, o que alberga, no fundo, quase tudo da vida do cidadão. Se queres que te diga, estou bastante satisfeito, acho ter boas perspectivas de carreira. Daqui a dois anos tenciono fazer o mestrado em comunicação e jornalismo.
Não respondeu e durante uma boa parte do percurso manteve-se a olhar pela janela, num silêncio obstinado. Estaria arrependida de me querer levar a sua casa? Sabia por profissão que não deveria forçar, falaria e revelaria o que desejasse à medida que o gelo fosse sendo derretido, que a confiança ficasse estabelecida, não havia pressa.
Um insecto esborrachou-se contra o vidro da frente, pareceu-me ser um pequeno gafanhoto verde.
O meu faro, o instinto de caça, começava a fazer-me sentir que havia em Selina uma história algures que me daria uma boa matéria, um livro até, por que não? Há muito que desejava aventurar-me na literatura, corria em paralelo à minha profissão, embora nem todo o jornalista fosse um bom escritor em potencial. Tinha a certeza de que não passara a vida toda a ler sem que disso não colhesse fruto, possuía uma sólida cultura geral e a escrita era-me um verdadeiro prazer. Num futuro próximo abraçaria esse almejo e transformá-lo-ia em realidade.
Subimos o Eixo Viário, em direcção a S. Paulo. As obras impressionantes que aí se erigiam, davam à cidade um ar de metrópole moderna e plena de pujança. Senti saudades daquela circular sinuosa a abarrotar do verde das árvores do antigamente. Conferiam-lhe um ar sedutor bucólico, era então, por excelência, o passeio obrigatório de todos os que se dirigiam para a Marginal ou Ilha do Cabo ao fim da tarde ou de semana. Essa fora outra Luanda, perdida para sempre, despida das suas casas e sobrados antigos, como se as cidades não tivessem memória, não vivessem de si mesmas como qualquer ser humano. Que não pulsassem com alma prenhe nas reminiscências boas e más do passado, por outras palavras, sem pulmões, sem raízes e sem essência própria, sem sangue a latejar em suas veias e artérias múltiplas, esquecida de uma Nzinga a Bande sentada em sua escrava e ofertada ao governador como espólio, de um Salvador Correia a aportar a Massangano. Visitei Havana, Bahía, Óbidos e Ouro Preto, entre muitas outras cidades do mundo, que me impressionaram pela sua arquitectura antiga, pela emoção que geraram, fazendo-me sentir que retornara ao século dezassete. Acho que se se conseguir manter a Rua dos Mercadores e as adjacentes dos Coqueiros como hoje estão, será uma vitória, já que a Cidade Alta se volatilizou quase toda, o Palácio Dona Ana Joaquina desapareceu para todo o sempre e tantos outros monumentos de um passado como cidade de mais de quatro séculos de vida. Desse tempo de memórias imorredouras, restou imponente e orgulhosa a Fortaleza de São Miguel lá no cimo do morro, órfã, ela que sempre dominou até onde o vista alcança em toda a sua volta, hoje ultrajada na sua beleza e significado por um prédio dito moderno e sem qualquer função social ou outra, que não fosse exercido em um qualquer mais pedaço de chão luandense, apagando ou esvanecendo-se assim séculos de história angolana. Foi ela que testemunhou ao longo dos séculos o crescer da cidade minúscula, revirou os olhos pardacentos da idade nas calemas seculares da ilha, na qual vira instalar-se os governadores do reino do Kongo para controlar a recolha do Nzimbu, as caravelas com a Cruz de Cristo e o desembarcar de Paulo Dias de Novais. Fez fé, através dos relatos que ouvia na boca dos seus ocupantes e se coçavam nas suas paredes espessas, sobre os grandes Ngolas. Séculos mais tarde, alegrou-se ao ver sair do Paço Episcopal o Senhor Bispo para descer do morro, que o com os seus passeios ao cair da tarde para se deleitar nos magníficos pores-de-sol luandenses e refrescar os pés na praia, deu nome ao famoso bairro da Praia do Bispo.
No presente, Luanda é uma proposta de cópia desfocada e torta de Shangai, um Hong Kong africanizado ao avesso, cidade feita pirata da terra do nunca, em nome de um progresso e desenvolvimento. Por isso tem tantas Ruas da Vaidade espalhadas pelos seus diversos bairros, as réstias das bualas que não conseguiram adaptar-se à nova vida e ser cidade, não obstante as modernas centralidades. A alma da nova Luanda é ainda rupestre.
Olhei de soslaio para Selina e dei conta de que vista de perfil, continuava uma mulher linda. Usava um par de brincos fantasia e um colar com pretensão a ouro. Nos punhos, várias pulseiras de diversos materiais e feitios e nos dedos das mãos, anéis de design duvidoso, não achando melhor maneira para os classificar. Havia algo de satânico neles, talvez por um, o maior, me parecer uma cabeça de carneiro, com os chifres retorcidos para trás numa quase perfeita semi-curva.
Uma vez entrados na rua que nos levaria para dentro do S. Paulo, ela virou-se para mim, entreabriu a boca com se, mais uma vez, esperasse que as palavras brotassem por si sós. Esperei e por fim falou.
- Conheces a Rua Venceremos?
Apanhado de surpresa, foi a minha vez de ficar como se as palavras necessitassem de ser empurradas cá para fora. Não acredito em coincidências, tudo obedece a um amontoado de ocorrências que envolvem milhões de pessoas e factos que acabam por desembocar num momento. A pergunta naquele local era o somatório sequencial de muitos anos de várias vidas. Nada é ao acaso. Engoli em seco e perguntei.
- Queres dizer a Rua da Vaidade?
- Dá no mesmo, sim a Rua da Vaidade, é aí que eu moro.
Tive a certeza que ela viu a minha atrapalhação, observou o nascer da ansiedade a fazer-me arfar de tal sorte que quase me senti desfalecer. Tive que encostar a viatura para me recompor. Não que seja muito emotivo, sou sonhador mas controlo-me relativamente bem com a realidade. Desliguei o motor, alheio à sua presença. Pela minha mente galoparam dez mil cavalos num tropel de cascos e relinchos ensurdecedores com uma matilha de lobos a perseguirem-lhes. Dez mil, contei-os um a um e quando finalmente se perderam numa nuvem de poeira no horizonte que se estendia nebuloso à minha frente, dei conta de Selina a sacudir-me o braço com violência, surpreendida e estupefacta.
- O que te aconteceu… Que susto! Estás a sentir-te mal?
Olhei-a como se a visse pela primeira vez, quem é esta mulher perguntei-me e quando reconheci o interior da viatura, que ainda continuava com o rádio ligado, saí do buraco escuro de onde os lobos arreganhavam as dentaduras esfomeados. Senti-me voltar ao mundo anterior, ouvi o reverberar da resposta colocada há anos luz, pelo menos assim me parecera, dá no mesmo, sim a Rua da Vaidade, é aí que eu moro. Como explicar-lhe o que me acontecera, se eu próprio não o sabia?
- Não sei, parece que me deu uma tontura e tive que parar, não foi?
- Quando te respondi que morava na Rua da Vaidade foi como se o mundo tivesse parado, ficaste lívido e a arfar, pensei que te ia dar um ataque cardíaco. Estás bem?
- Deixa-me colocar as emoções em ordem, de facto não entendo o que me deu ou aconteceu.
- Leva lá o tempo que quiseres, mas vou sair para fumar um cigarro – Dito isto, abriu a porta da viatura e saiu para o passeio, onde acendeu o cigarro, dando baforadas longas, seguidas, parecia estar mais tensa do que eu.
Recostei-me no assento, baixei o volume da música e novamente o coração saiu disparado, felizmente que ela não estava a meu lado para o notar. Pum, pum, pum, batia desordenado. Pum, pum, pum, ouvia dentro de mim, como um tambor Cokwe vomitando para longe qualquer boa ou má nova. Comecei a ficar preocupado nunca sofrera de tensão alta, antes pelo contrário, vangloriava-me de ser considerado hipotenso como se tal fosse uma condecoração a levar no peito. Senti o primeiro baque quando ela mencionou o nome da rua em que morava, rua que até eu conhecia há muito e que me concedia às vezes magníficos concertos nocturnos gerados pelo sopro melódico do vento, na casa velha de primeiro andar. Qual era a ligação, se ligação havia, certamente que sim, não acredito no acaso, no imprevisto? Também não podia ficar ali parado na rua, Selina até já acabara de fumar e esperava qualquer coisa de mim, teria que deixar as elucubrações para mais tarde, no meu apartamento com um reconfortante gim tónico na mão e uma boa música a massajar e provocar o intelecto. Agora havia que partir, estava suficientemente recuperado, passara-me a camoeca, como se diz na gíria. Olhei para ela, sorri como que a desculpar-me e fiz-lhe um sinal com a mão para entrar.
- Já, já estou melhor, quando chegarmos mostra-me a tua casa, embora tenha um pressentimento que já saiba qual seja. – Disse, como se nada acontecera, como se tivesse reatado a conversa onde ficara à última resposta sua.
Para além de eu próprio, duvido que alguém mais tivesse visto uma pessoa a ser assolada em plena luz do dia, ao volante do carro, por uma imagem de dez mil cavalos a fugir de uma matilha de lobos esfomeados. Tinha que me concentrar, agarrar as pontas soltas de toda esta estória, que começara com o encontro de Salina.
- Tanto melhor. - Respondeu secamente, sentando-se e fazendo um gesto indicativo com a mão direita. - Quando lá chegarmos, digo-te qual é a casa.
Não foi necessário, conhecia o caminho e sabia qual era a casa, se pudesse apostar com alguém, apostaria tudo o que tenho. Há momentos das nossas vidas que temos certezas absolutas, poríamos a mão no fogo se tivéssemos que comprová-las sem sermos videntes ou adivinhos. estava consciente de que a casa de Salina era a minha casa orquestra, a casa do medo para as crianças e supersticiosos, a cada um conforme o olhar que utilizasse para a ver.
Sem uma palavra, parei à frente da residência e aguardei. Saber aguardar é um dom, sobretudo na minha profissão, onde nunca pode haver pressa ou impaciência. Daí, acredito, serem os jornalistas uma raça de beberrões e fumadores. Sem pressas ou impaciências, aguardamos. Aguardamos, aguardamos sempre pelo formar da notícia, aguardamos nos centros de convenções, nos hotéis e palácios que sua excelência o senhor fulano, ou o senhor beltrano, se digne relatar-nos as mentiras que já tinha preparado para nos contar como verdades indesmentíveis. Aguardamos, nas ruas onde os cafés e os bares estão sempre próximos e convidativos, sobretudo se faz frio, com máquinas, câmaras, tripés, microfones, caça palavras ou esferográficas e pequenos blocos de papel nas mãos. E de aguardo em aguardo, vamo-nos enchendo de copos e entupindo com cigarros. Eu que o diga, já viciado no gim tónico, felizmente não fumo.
- Não queres entrar, ou vais ficar aí parado e sem dizer nada? - Perguntou por fim, sem que eu entendesse o motivo da agressividade.
- Estava à espera que te pronunciasses, não sabia o que fazer. - Desculpei-me.
Arrumei melhor o carro, meio estacionado numa poça de água, à frente da casa de primeiro andar. Jamais imaginara um dia lá entrar, não obstante a curiosidade que sempre me despertara. A casa era pequena, talvez uma sala comum, uma casa de banho adequada, uma despensa e uma cozinha em baixo, uns dois ou três quartos de dormir e uma casa de banho em cima, não me parecia comportar mais divisões. Certamente que teria um quintal atrás. Tinha janelas em todos os lados, as do primeiro andar a necessitar de reparo. Para além da falta de pintura, descortinava-se a madeira carcomida, talvez pelo salalé nos rebordos do telhado, onde faltavam algumas telhas.
Conseguimos atravessar a rua sem molhar na lama os sapatos, graças aos pedregulhos lá colocados para o efeito. Ao entrar vi as minhas suspeitas confirmadas, a sala era sim pequena e mobilada com o que mais parecia tralha recolhida aqui e ali, ou que já tinha umas boas e más décadas de uso. Encostado a uma das paredes, um armário que fazia de cristaleira e uma geleira com a porta enferrujada na lateral. O sofá teria sido em épocas melhores de napa, estava recoberto por uma colcha de retalhos original, embora fosse mais honesto chamar àquilo retalhos de colcha. Um cadeirão encontrava-se ao lado e directamente em frente ao televisor antigo. Nas paredes, reproduções de quadros diversos e um calendário de há dois anos.
Todavia o que mais me espantou foi a quantidade de bonecos espalhados pelo sofá, cadeirão e até pelo chão. Bonecos de pano, de plástico, de madeira, de palha, grandes, médios, pequenos, vestidos, despidos, com braços, sem pernas, com uma perna só, um braço só, outros decapitadas e, sobretudo o que mais atenção me chamou, crucificado na parede ao lado do calendário, com um braço pendendo.
- Senta-te onde quiseres, talvez na geleira haja uma cerveja ou uma gasosa. Já volto. - Disse, enquanto se dirigia para a escada que ligava ao primeiro andar.
Para ser sincero, comecei a sentir vontade de me pisgar dali para fora, parecia ter entrado numa cena de algum filme de terror. A qualquer momento esperava ver um dos bonecos levantar-se, caminhar manco porque coxo, a perna toda torta, chegar-se a mim e tocar-me no joelho com uma leve pancada, para me dizer qualquer coisa como o que vieste cá fazer, não sabias que tens de trazer um irmão nosso e quanto mais feio e usado melhor, a bruxa assim o exige?
Dei então conta que não havia uma única boneca. Com medo, respondi automaticamente à hipotética pergunta que me havia sido colocada a desculpar-me, não, não sabia, e esperar que isso não causasse qualquer constrangimento. Não desejaria quebrar as regras de uma casa, onde entrara pela primeira vez. Para não o enfurecer, garanti-lhe que da próxima vez traria dois, pensando que, claro, se assim o fizesse, estaria perdoado. Vi um filme sobre bonecos assassinos, e ficara extremamente impressionado.
Olhei à volta, mas não me sentei, decidi esperar que Selina descesse. Nem fui à geleira, cerveja não bebo e gasosa iria dar-me sede, talvez até o frigorífico estivesse cheio de bonecos, todos a tiritar de frio e com caras de poucos amigos, se não violentos e decididos a atacar o primeiro que abrisse a porta, julgando ser a tal bruxa criada na minha imaginação. Era melhor ficar ali quieto, atento e de pé, pronto para o que desse ou viesse.
Foi quando notei um gato preto com manchas cinzentas, escanzelado, com falhas de pelo por todo o corpo e cego de um olho. Seria esse o tal gato rameloso da bruxa? Apercebi-me dele, porque começou a ronronar e avançar para se roçagar na minha perna direita, rabo entesado e a abanar ligeiramente, mas só para um lado. O primeiro impulso foi o de lhe dar um pontapé violento que o enviasse contra a parede, só não o fiz por medo que Selina ouvisse o miar do bicho em dor e também porque se sabe que gatos são pessoas que à noite ganham vida e forma humana e colocam feitiços.
Quem não os ouviu nos telhados e muros das casas, no breu da noite, encetar estridentes diálogos que nos põem o pelo eriçado? Não acredito em feitiços nem em feiticeiros, todavia sempre é bom respeitar o que os outros acreditam e afirmam, não há nada a perder, o mundo não é como o vemos e percebemos. Angustiado e enojado, deixei o bicho rafeiro roçar-se pela minha perna direita.
- Vejo que já fizeste um amigo, o que não é muito comum. O Pepetela não gosta muito de gente. – Disse Selina enquanto descia as escadas.
Surpreso com o nome do gato, ofendido mesmo, não consegui conter-me.
- Então tu vais dar o nome de um dos maiores expoentes da nossa literatura ao gato? Não sabes quem é o Pepetela?
- Claro que sei, não sou assim tão ignorante. Quando se dá um nome é para homenagear alguém ou alguma coisa. Porque não te sentas ali? - Indicou o cadeirão ao mesmo tempo que corria com o gato que, entretanto, lá se refastelara.
Automaticamente para lá me dirigi, sacudindo primeiro uns tantos pelos do bicho, se é que eram os dele. Quantos gatos não entrariam por aquela janela aberta da cozinha que antevira? Por que razões o bichano nojento e zarolho não podia aqui receber seus comparsas de vielas obscuras, ou reunir a sua confraria de feiticeiros das redondezas e preparar os bungulamentos?
- Mas não se homenageiam animais com nomes de pessoas!... – Insisti ainda em desconforto intelectual, afinal também escrevia para ganhar a vida.
- E porque não? Seria a primeira vez? Olha, dei-lhe esse nome porque o único livro que tinha em casa, esquecido por alguém, era do Pepetela, O Cão e os Calús. Não sei se o diabo do gato teve intuição ou não de que o livro tratava de um cão, foi-o comendo aos poucos.
- Comendo o livro? – Perguntei, estupefacto. - Sei que cabritos comem tudo, incluso papel, agora gatos…
- Pois é, eu bem escondia o livro mas dava sempre com ele e foi comendo, até que o livro acabou por desaparecer por completo. Decidi então trocar-lhe o nome de Zacarias para Pepetela, em homenagem.
Comecei a ver o ponto de vista dela, não deixava de ter uma certa lógica, não é qualquer gato que come um livro inteiro, não obstante a fome que deve passar diariamente, mesmo havendo as ruas e os becos onde procurar alimento. Olhei-o com simpatia, o olho em falta pareceu-me não tão revoltante, como me parecera inicialmente. Espero que tenha digerido bem a estória, terá sido primeira vez que um gato comeu um pastor alemão.
- Se assim foi, o que dizer!... – Respondi, não muito convencido. – Todavia acho que não o deves tratar por esse nome.
- Também não sei explicar. O livro foi comido por ele, e não lhe vou mudar o nome só porque te sentes ofendido. – Disse Selina, melhor humorada.
Esperei que dissesse qualquer coisa mais. Sentou-se no sofá, agarrou num dos bonecos, que não tinha o braço esquerdo e lhe faltava parte do cabelo e ficou com ele no colo, acariciando-o.
- Já te disse que passo aqui por esta rua com regularidade, para encurtar caminho quando venho ao bairro visitar uns amigos. Sempre me indagara a quem pertenceria esta casa, pois é a única com um andar, destoa do resto. Vê como é a vida, afinal és tu quem aqui mora.
- Era a casa dos meus sogros, e agora quero que te vás. Obrigado pela boleia, passa um outro dia. - Disse tão abruptamente, que me apanhou de surpresa. Levantei-me de imediato.
- Está bem, gostaria de passar novamente e falarmos um pouco, talvez te possa ser de ajuda de algum modo. – Tentei amenizar.
- Não preciso da tua ajuda, obrigado, mas podes passar sempre que desejares.
Descortinei Zacarias e pisquei-lhe um olho, em solidariedade. Não deveria ser fácil a vida de um gato zarolho, ou melhor, sem um olho, meio pelado e a viver rodeado de bonecos mutilados. Se realmente fosse feiticeiro nas horas vagas, poder-lhes-ia cravar alfinetes no corpo. Com o arrepio que senti, estuguei o passo.