segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
sábado, 3 de agosto de 2013
MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS
OS MALDIZENTES
Recordo-me de, na minha infância, o meu pai receber o Reader’s Digest,
que eu lia com muito deleite pelas estórias e informação que continha.
Havia uma secção que logo procurava, por me fascinar com a descrição de
personagens e seus feitos em prol de qualquer causa que concorria para a
felicidade ou alegria do próximo.
Evidentemente que a personalidade
em descrição aparecia sempre pela positiva, conta tida os sentimentos
carinhosos que gerava. Creio que a coluna intitulava-se “O carácter mais
inesquecível” ou algo similar. Não sei se a revista ainda existe e
continua a publicar tal secção, todavia a evocação advém do facto de
constatar que a maledicência e a intriga é ainda hoje característica
comum, sobretudo nos locais de trabalho, onde é utilizada como forma
abjecta de pretensa ascensão carreirista por uns, ou, por outros, como
laxativo libertador da bílis mental, tornando pessoas normais e sãs em
vasos sanitários duma diarreia psíquica própria.
O maldizente
profissional é aquele que, indelevelmente marcado por qualquer
traumatismo recalcado, e se digo indelével é porque sei que ele
pessoalmente não acredita na psicanálise, incapaz portanto de se ver
sofrendo de um mal-estar psíquico, nunca encontra no próximo valia ou
qualidade reconhecidas, a não ser por motivos escusos ou de bajulação.
Torna-se assim uma espécie de surucucu iluminada que na perene sapiência
que a autodivinisação lhe impõe, para tudo tem teoricamente solução,
sem nunca ser parte dela. Age sempre pelas costas numa rigidez de
caracter que tem todas as características caninas, menos a atinente
lealdade.
Uma vez gratificada a sua mesquinhice, mas nunca se
livrando da incómoda frustração, aparece como um vaso exteriormente
untado de mel, todavia pleno de fel, querendo ajudar sua próxima vítima,
numa comédia perniciosa de pretensa boa vontade, impingindo a ideia de
que só graças a ele se consegue unir os cacos estraçalhados por sua
acção purgativa e merecida.
Isto leva-nos um pouco à questão da
moralidade, onde este tipo de comportamento se revela como uma invasão a
fronteiras específicas criadas pela sociedade que, para sua própria
protecção, determina regras sociais de convivência e de ética, que tanto
hoje lutamos para ver aplicadas e absorvidas.
O autor do livro “O
que é a Ética”, o professor Luís Montenegro Valls, ensina-nos que para
um comportamento socialmente correcto o cidadão tem que não só ter
confiança no Estado como “agir de tal modo que seja bom não só para mim
mas também para os outros”. Quanto à confiança no Estado, “ela está
directamente relacionada ao nível de organização da sociedade: os
direitos e deveres do cidadão para com o Estado (e vice-versa) precisam
ser respeitados. Quando há falência do Estado as pessoas deixam de agir
moralmente. Cada pessoa passa a lutar pela própria sobrevivência e
abre-se o caminho para a lei do salve-se quem puder”.
Felizmente
para todos nós, o Estado tem-se movido na direcção inversa dessa
inadiplência passada com passos determinados, tem-se constituído
paulatinamente no garante da nascente democracia, tem visado e vindo a
consolidar a organização da sociedade, sobretudo com o fim da guerra que
a tudo isto levou. Mais do que nunca, a lei do salve-se quem puder vai
sendo banida do nosso meio e a sociedade começa a reganhar formas e
conteúdos onde os direitos e os deveres do cidadão são respeitados, e a
questão do civismo, da moral e da ética passam a ser preocupação
premente da maioria.
Só assim, nos iremos transformando de
maldizentes em bendizentes, em benefício de todos, sobretudo na nossa
paz interna e do nosso amor-próprio.
10/07/05
PROVÉRBIOS ANGOLANOS
1 – A acha de lenha com que me bate a meretriz não
acabou (comigo): // Não me levou os dedos. (Foi-se mas não me levou os dedos
Posso arranjar outra!)
Lusuali bakuba indumba, lu si mana ko://
Zinzala kanéti ko (bacongo – kiuoio / cabinda)
2- A água que acarreta o velho (ou velha):// É a que
mata (bem) a sede.
Mazi mateka likákata:// Ma mimana mpuila (bacongo
– kiuoio / cabinda)
ADIVINHAS ANGOLANAS
ADIVINHAS
ANGOLANAS
1- Pergunta:
Aqui, um morro; aqui um
morro. No meio, está ajoelhado um elefante.
[Koko, mulundu; koko,
mulundu. Bu axaxi, bu afukuma nzamba - Kimbundu]
Resposta:
O piolho entre as
unhas.
[Ina bu axaxi ka iala]
2- Pergunta:
O que faz Deus, com
calças e casaco pretos e camisa branca?
[I sangala chi vanga
Tata Nzambi, kazaca i kalssa nombe. Kaza chi nkutu chi pembe? – Kikongo]
Resposta:
O corvo
[Ngongongo]
O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA
CHIKAKATA MBALUNDU
Ao distinguir com Menção Honrosa este romance de estreia, “Cipembuwa”, o
júri do Prémío Sonangol de Literatura, em 1986, pretendeu dar a conhecer uma
voz diferente no panorama da mais jovem produção literária angolana.
CIPEMBUWA
Anoitecia.
O manto negro cobrira há pouco a amplitude telúrica. A cor rubra do sol
subsistia em reminiscência no meu olhar incandescido pelo reflexo solar diurno.
A
cidade deveria estar a recolher.
Uma
quietude imponente começou por assolar o hospital. Os passos das enfermeiras de
piquete ressoavam com maior intensidade.
O
meu olhar espraia-se pelo compartimento hospitalar, onde me acho internado.
Sinto-me manietado em todos os meus gestos. As ligaduras, tal como uma múmia
egípcia, cobrem o meu crânio, tronco, braços, inclusive a perna direita que,
erguida, baloiça no espaço, suspensa sob o meu olhar apreensivo.
Todavia,
à medida que os factos vividos, cinco dias atrás, perpassam, reproduzindo-se em
minha mente, consciencializado-me, cada vez mais, das eventualidades
susceptíveis de se interporem em nossas vidas.
Trazer
à tona da consciência tais factos é visualizar a tarde de sol dominical em que
passeávamos pela cidade juntamente com um grande amigo de infância. É relembrar
o gesto e o grito de aflição, misto de susto e surpresa, quando um camião se
abateu, acidentalmente, contra nós. Recordar estes factos é vivenciar a
estupefacção de me reencontrar desperto num local inesperado: o hospital, numa
mescla de odores peculiares a estes lugares.
Foi
precisamente neste instante que o vi entrando. Vinha acompanhado por duas
enfermeiras. O que prendeu de imediato a minha atenção foi a falta do braço
direito. Era perfeitamente visível a sua ausência, do ponto onde me encontrava.
Nem
o uniforme hospitalar que trazia conseguia encobri-lo
Do
braço amputado, dirigi o meu olhar para a sua expressão compungida, dolente,
apagada, legível em seu rosto. Era alto e estreito. Nem as vestimentas
desmesuradamente grandes eram capazes de iludir o seu corpo.
Ficou
postado à beira da cama. Antes que o fizessem deitar-se nela, que era paralela
à minha, observei que passara vários dias deitado. Tinha uma cabeleira farta e
despenteada.
De
tanto de se deitar dum lado, o lado esquerdo era desproporcional ao direito,
visto de perfil. O queixo relativamente ovóide emparelhava-se perfeitamente com
o seu nariz achatado. As olheiras próprias de alguém que usara óculos faziam
sobressair uma expressão escancarada.
Sonolentamente,
com um certo esforço, remexia as pálpebras. Não obstante isso, constatei de
imediato que possuía uma personalidade forte.
Agora,
que o vejo sentado na cama, com a cabeça inclinada e com queixo ovóide roçando
seu peito, apercebo-me que as suas profundas olheiras não eram devidas ao uso
de óculos, mas sim à dor que o carcomia. Este facto é perfeitamente observável
no emagrecimento das faces que acentuam e fazem sobressair os olhos faciais,
dando a impressão de ser uma caveira.
O
seu empalidecimento denotava claramente que deveria sofrer de uma anemia
profunda, ou de outro flagelo devastador.
Deitado
sobre o seu único braço, o esquerdo, mantinha o semblante direccionado para
minha cama. Com os olhos fechados, esboçava com as pálpebras um leve torpor,
que se consubstanciava numa espécie de espasmo visual. Mesmo dormindo, sofria.
Imerso
em interrogantes sobre o que se teria passado com o meu novo companheiro de
quaro, abstive-me de pensar no desastre que atravessara a minha vida.
Deveria
ser para além da meia-noite quando o silêncio do nosso quarto foi quebrado
pelas lamúrias aflitivas e lancinantes emitidas pelo companheiro. Como se
alguém o estivesse sufocando, acompanhava os gritos com movimentos e
gesticulações caóticas. Tudo mostrava qual a intensidade e a amplitude do
flagelo que o atormentava.
Correndo,
duas enfermeiras entraram abruptamente no quarto.
Uma
enfermeira baixa, gorda, tentava manietá-lo, enquanto que a outra tratava de
aplicar-lhe uma injecção.
O
antídoto deve ter-lhe feito bem e acalmado o seu tormento e aflição. Passado
uma hora, tentava excitadamente travar um diálogo comigo. O meu silêncio fez
esmorecer o seu ânimo.
Perguntou-me
se as ligaduras que me envolviam construíam um óbice para escutá-lo. Abstive-me
de responder, pensando que estivesse delirando.
Posteriormente,
depois de breve silêncio, insistiu no seu projecto, imprimindo uma entoação de
tristeza na voz.
Aquiesci
com ligeiros movimentos da cabeça. De facto, é difícil recusarmo-nos a escutar
alguém que numa expressão compungida diz-nos querer falar e não ter a certeza
de resistir por mais de umas escassas horas.
Meticulosamente,
pôs-se a falar. Dir-se-ia que falava para si. Não se importava com atenção que
eu poderia manifestar. Tive a impressão de que se desgastava numa verbosidade
insurgente, como se pretendesse descarregar um pesadelo fardo que o
atormentava...
A
mulher, ligeiramente estonteada, lançou-se apressadamente contra uma árvore que
se encontrava no centro da lavra. A azáfama laboral interrompeu-se subitamente.
Abraçou-a com as duas mãos, até sentir o encaixe dos seus dedos à volta do
diâmetro do tronco. Como resposta do contacto do seu rosto contra o caule
escuro e rugoso, sentiu, sentiu um arranhão. Afastou o rosto, lançando
dolentamente as mãos à cabeça, onde se desenhava um penteado ndondi (1)
Transcorridos
uns segundos, achou-se cercada por outras mulheres que aí labutavam. Todas
sustentavam em suas mãos etemo lymbundo
(2) que, perante o acontecimento,
lançaram abruptamente ao chão húmido salpicado por vermes e insectos coveiros.
Num gesto que denotava, clara e visivelmente, temor, saíam em socorro de sua
companheira.
O
homem, numa lassidão mesclada por uma expressão de compreensão sobre o que
passava, lançou a enxada de cabo alongando ao solo. Com as mãos sobre as ancas,
não se precipitou. Não correu. Não entrou em pânico. Simplesmente, concentrou o
seu olhar nos carreiros, onde há pouco a sua mulher ia, paralelamente,
disseminando a rama de bata-doce e ele ia soterrando com grandes punhadas de
terra húmida e vermelha.
O
homem não se dirigiu para local onde se encontrava a mulher, com o rosto
congestionado pela dor e perlado de suor, que se agitava estendida no solo, sob
o olhar complacente de suas companheiras.
O
homem afastou-se. As mulheres amparavam a sua mulher.
Imerso
em cogitações, dirigiu-se à lavra vizinha. Distava da sua uns cem metros.
Grandes jorros de água tinham caído na véspera. O solo exalava fortemente um
odor a lama que impregnava as suas narinas.
Chegou
à lavra vizinha. Lançou um olhar perscrutador sobre as mandioqueiras
recém-espetadas no solo. Não avistou ninguém. Afastou-se daí, dirigindo-se ao ocimbadi (3) situado no centro da lavra, onde estava a anciã que separava os
ramos bons dos maus, colocando as mandioqueiras com este aspecto à sua direita
(1) Penteado simples de duas tranças ou
mais.
(2) Enxadas próprias para mulheres, de
cabo curto e sob a forma de V.
(3) Porção de terreno liso e duro, feito
pelo salalé.
Ao
escutar o estalido seco de paus a serem pisados, esboçou um gesto impulsivo que
fez cair a quinda colocada próximo das suas costas.
Ao
encarar os olhos apreensivamente brilhantes do homem, pôs-se de pé num salto.
Seguindo atrás do homem, acompanhou-o.
Não houve qualquer troca de palavras.
A
sua mulher já não se encontrava na lavra.
Ao
chegar a casa, o homem isolou-se, internando-se no interior da cubata. Na
tépida penumbra da cubata feita de pau-a-pique e coberta de capim, pôs-se a
aguardar.
A
anciã abandonou-o mal se apercebera da ausência da mulher. Decididamente,
embrenhou-se pelo matagal que circundava a aldeia. Deixando atrás de si mulembas,
mangueiras e bambus, deu de frente com uma lavra. Na berma, sobre as raízes á
superfície de uma árvore de proporções avultadas, encontrava-se sentada a
mulher.
Transcorrido
um espaço de tempo indeterminado, o homem viu, através da porta de dimensões
exíguas, dois vultos a aproximarem-se sorrateiramente. Espicaçado pela
curiosidade, tentou levantar-se. Algo, em seu íntimo, disse-lhe que continuasse
naquela posição: sentado à lareira.
Uma
angústia aterradora e penetrante apertava-lhe o coração. Tentado atenuá-la,
olhou à sua volta: o tecto enegrecido pelo fumo da lareira; as maçarocas secas,
para semente, pendentes do tecto, tal como estalactites, achavam-se de igual
modo enegrecidas; a s três grandes panelas de barro, com os bojos salientes,
colocadas no canto da cubata, donde advinha um ruído seco, aquoso, tal como o
bater das águas sobre uma pedra. Era o ocimbombo
(1) em fermentação
Todas
essas imagens insurgiam-se contra ele, sentado no olumbambo (2), sem no
entanto possuírem algum poder de o distrair e tirá-lo de sua apreensão.
Viu
a anciã aproximando-se. Entrou na cubata. A sua mulher achava-se distante,
sentada e perdida na invisibilidade da obscuridade nocturna. Ao confrontar-se
com a configuração do corpo encurvado e carcomido da anciã, procurou com o seu
olhar inquiridor, ler e apreender todos os gestos susceptíveis e capazes de lhe
dizerem algo.
A
anciã passou ao seu lado, sem se importar com ele. Dirigiu-se ao canto da
cubata. Era no mesmo local onde se achavam as grandes panelas de barro em
fermentação e com os bojos salientes. A anciã saiu daí com uma cabaça aberta na
extremidade.
O
nó que lhe apertava a garganta, a angústia que lhe pressionava o coração,
foi-se dissipando paulatinamente. Um sorriso de satisfação desenhou-se no seu
semblante. Compreendeu, naquele momento, que a sua mulher tinha dado à luz um,
rapaz. Na verdade, a cabaça onde se achava a placenta repousava fora da cubata, na fronteira de demarcação entre o
tecto de capim e a parede.
A
esteira foi estendida entre o olumbambo e as panelas de barro. A sua aspereza
peculiar fora atenuada com folhas de ongonguila. Por cima achava-se estendido
um pedaço de tecido encardido.
A
mulher dificilmente continha a sua dor. Foi deitada juntamente com o
recém-nascido.
As
chamas, sob labaredas ígneas, iluminavam todo o compartimento. Sob o clarão
avermelhado, o homem olhava, como que hipnotizado, a mulher
e a criança aconchegada no peito
da mãe. Estava assim tão absorto que não deu conta das mãos rugosas e calosas
que, respeitosamente, o afastavam. Voltou a sentar-se no olumbambo, lançando o
olhar em todas as acções da anciã: carinhosamente, separou a criança da mãe,
deitando-a com a face para o tecto. Meticulosamente, ingeriu uma grande
quantidade de água morna, que repousava numa pequena tigela de barro. Em vez de
engoli-la, pôs-se, ritmicamente a lançá-la em jorros sobre o corpo da criança.
Tudo era feito num ímpeto e numa sofreguidão desenfreada, como se naquela água
estivesse o mistério da existência. Chorando aos gritos, a criança reagia
contra o processo a que estava sendo submetida.
Dividido
entre as lamúrias aflitivas da mulher e as acções da anciã, o homem viu-se na
(2) Bebida alcoólica.
(3) Superfície saliente dentro duma cubata, que serve para vários fins.
obrigação
de sair da letargia que o envolvera. Segurou a criança pelos sovacos. Teve, de
imediato, a impressão de que segurava um rato. Manteve-a assim suspensa. A
mulher idosa tirou de seus haveres um fragmento de trapo húmido. Decididamente,
e orientando-se por uma saliência rota na extremidade, fez uma tira que amarrou
no lombo da criança. Voltou a deitá-la ao lado da mãe. O corpo untado com óleo
vegetal e as labaredas da fogueira.
Uma
vez mais, a anciã inclinou-se para poder transpor a porta de dimensões exíguas
e saiu. Deu nus passos para o interior da aldeia. Quando antigiu ao centro.
Pôs-se aos gritos: ULÚ, ULÚ, ULÚ, ULÚ. A velha batia compassadamente com as
palmas da mão contra os lábios. Os gritos ressoavam cada vez com maior
intensidade, propagando-se a toda a aldeia.
O
homem sentiu-se enlevado pela alegria que o avassalava e o sentimento de
paternidade que em si fervilhava. Com os olhos a irradiarem luz, inclinou-se,
ajoelhando-se na esteira.
Concentrou-se
novamente na criança e na mulher que o olhava vitoriosamente. E sorriu.
Miraculosamente,
os gritos ululantes surtiam o seu efeito.
Um
por um, aos pares, as pessoas foram-se aproximando, conglomerando-se no pátio,
frente à casa do homem. Com a alegria estampada no rosto, embriagada pela
falecidade, o homem correspondia quase maquinalmente às pessoas que, com uma vénia
e um sorriso, como se o seu provento fosse colectivo, congratulavam-no por ter
dado à luz um presumível caçador ou apanhador de lenha no coração da floresta.
Transcorridos
dois dias, quando se deu por terminada aquela procissão, a mulher, o homem,
juntamente com alguns familiares mais próximos, reuniram-se. O objectivo era o
de atribuir um nome à criança. Sem qualquer controvérsia, a eleição caiu no
nome do avô: o grande caçador de bambis e palancas. No decorrer da cerimónia
alguém ventilou a aldeia de que era praticamente precoce atribuição do nome. O
seu aspecto, debilmente franzino, mostrava claramente quais as escassas
possibilidades de sobrevivência do recém- nascido. Portanto, seria uma
precipitação...
O
homem sentiu-se apreensivo. Franziu o nariz, abanou os ombros. Cruzou a esteira
e saiu. Fora, sentiu-se assaltado por uma diversidade de questionamentos. Um
pressentimento obscuro perpassou em sua mente. Já o vivenciara durante todo
aquele processo que se consubstanciara no nascimento de seu filho.
Recordou-
se discussão que tratava com o sekulu
(1) Kandjaia. O problema
circunscrevia-se numa querela de divisão e delimitação de terrenos.
Inesperadamente, o sekulu Kandjaia intrometera-se abusivamente em sua vida.
Insistemente, pretendia fazer com que lhe cedesse uns metros do seu terreno.
Ele fora intransigente e inflexível.
Pelo
seu arrojo, subtileza e inteligência resolvera o caso rapidamente. O causador
do problema saíra duplamente derrotado. Não conseguiu materializar o seu
projecto, ficou de entregar-lhe uns metros da sua lavra, que ele conseguiu
provar pertencerem-lhe desde há muito. Assim tinha-se consumado o caso.
Algo
ficou, no entanto, incrustado em seu íntimo. Era uma apreensão consubstanciada
em desconfianças e previsões inusitadas. Presumivelmente, pensou, deveria
residir aí a debilidade e frouxidão do recém- nascido. Não cometera onjamba (2). Não roubara. Não possuía feitiço. Sim, a causa deveria estar
na represália do velho Kandjaia.
Os
dias avançavam resolutamente. A apreensão do homem não desfalecera.
Acentuava-se cada vez mais. As folhas do ongonguila encontravam-se já secas.
Foi o dia em que a criança foi atacada por uma crise. Foram momentos difíceis,
de consultas ao quimbanda e a outro tipo de a advinhos. Foram momentos de
competição no decorrer de todas as noites. No dia em que todas as esperanças se
tinham esfumado, a criança resistiu à morte.
__________________________________
(1) Velho
(2) Doença supostamente originada pelo
adultério da parte do homem, durante o
período de gestação da mulher.
O
umbigo caíra finalmente...
A
mulher pegou nele e enterrou-o ao lado da casa, próximo dos resquícios.
As
galinhas cacarejavam. Debicando aos grãos de milho disseminados no solo, iam
simultaneamente, remexendoresolvendo a terra com patas. O homem encontrava-se
na capoeira. Com uma enxada e quinda, tirava os excrementos de galinha
misturados em cinza para o estrume da horta. Tinha-se esquecido da queda do
umbigo. Foi por isso que se sentiu surpreendido quando viu a sua mulher e a
criança fora de casa, ao sol. Foi naquele dia mesmo que se decidiu, de uma vez
por todos, atribuir definitivamente o nome à criança.
Os
pilões subiam e desciam num ritmo cadenciado. As duas mulheres acertavam
infalivelmente na boca do almofariz. Cada uma levantava a mais alto o seu
pilão, a fim de evitar que houvesse uma simultaneidade no acertar na
extremidade circular daquele recipiente feito de tronco de árvore e chato na
extremidade. Assim que a outra levantou o pilão, a mulher mandou-a parar. O
milho que se achava dentro do almofariz
transbordava, disseminando-se pelo chão. Via-se espalhado no chão milho partido
e farelo.
A
mulher meteu a mão no interior do almofariz, voltando com um punhado de milho
húmido. Lançou um olhar compenetrado sobre os grãos descascado que salpicavam
as suas mãos. Puxou a quinda que se encontrava a seu lado despejou nela todo
conteúdo do almofariz. Enquanto que a outra voltava a meter milho no almofariz,
ela sentou-se no chão com as pernas abertas. Segurou no ongalo (3). Com
movimentos ascendentes e descendentes, completando-os com sopros expelidos de
seus pulmões, ia separando o milho do farelo. Todas as suas acções se
sincronizavam num ritmo cadenciado. Colocava os grãos de milho à sua direita e
o farelo à sua frente.
A
criança nua, esbranquiçada pelo pó o abdómen dilatado, aproximou-se. Tinha a
tira atada ao lombo. Descalça, tentava obstinadamente misturar o milho com
areia.
A
mulher segurou-a pelas mãos. Puxou-a para si. Sentiu naquele momento uma
predilecção particular pelo seu filho, franzino doente e débil...
O
tempo fez que se construísse posteriormente todo um edifício de veneração.
A
partir daí, foram-se desenvolvendo e consolidando laços fortemente arreigados
entre a mãe e o filho. Nas vicissitudes da vida, cada um solicitava-o e
demonstrava-o da melhor maneira.
(3) Peneira
In
“Cipembúwa”, União dos Escritores Angolanos, 1989
Etiquetas:
Livro editado pela Mayamba Editora
quarta-feira, 12 de junho de 2013
VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA
VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA
ANGOLANA
Por Jurema de Oliveira
Resumo:
Depreender na literatura angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.
Palavras-chave:
tradição, oralidade e insólito
O corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto
de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do
mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).
O presente trabalho tem por
objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo
escolhemos as obras dos autores Boaventura Cardoso e Fragata de Morais.
Boaventura
Cardoso é autor de Dizanga dia muenhu (1977),
O fogo da fala (1980), A morte do velho Kipacaça (1987), Maio, mês de Maria (1997), O signo do fogo (1998), e Mãe, materno mar (2001), enquanto que
Fragata de Morais escreveu Como iam as
velhas saber, A seiva, Jindunguices (1999), Momento de ilusão (2000), Amor de perdição, Antologia panorâmica de textos dramáticos, A sonhar se fez verdade (2003) e A prece dos mal amados (2005),
O fantástico na prosa angolana (2010) Batuque
mukongo (2011).
O
século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e
em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência
nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo
com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida,
as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não
habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer
possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e
consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num
espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos
sustentadores do gênero insólito:
[...] o mundo organizado de repente se desorganiza,
sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o
clima do absurdo, isso então seriam as características de um ‘insólito
contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os
(Rodrigues, 2007, p.92).
Nessa
perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por
uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando
nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso
oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e
discursiva, numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as
experiências humanas diárias dos “pontos-sujeitos”, a base da ficção de
Boaventura Cardoso para quem o personagem tem sempre um movimento especial,
insólito. Sendo assim, em “A árvore que tinha batucada” do livro A morte do velho Kipacaça, o elemento de
destaque é a árvore:
[...]
assobiei então e o silêncio da noite que apenas de vez em quando era cortado
pelo vento e o silêncio da noite se engravidou então de assobios. Fiu! Fiu!
Fiu! E deixei ainda de assobiar, mas o silêncio continuou a se encher de
assobios. E imobilizei então de novo o passo. E ouvi então vozes: vozes. E
decidi então: passinho passo progressivo. E ouvi então outravez: vozes. Quem
vem aí? _ quem falou assim fui eu. Quem vem aí? _ vozearam vozes. E parece que
as vozes estavam a vir então de uma árvore que estava: próxima (Cardoso, 2004,
p.23).
Para
Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a
sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em
santos não podem curar-se com milagres de santos:
[...] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira
inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação
privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente
favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e
categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de
uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’
(CARPENTIER, 2009, p. 9).
A
experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que
envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso,
é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao
mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O
fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos”
(TODOROV, 2004, p. 100) como aqueles que intrigavam o Sô Administrador:
Intrigado, Sô Administrador mandou então chamar os
cipaios e falou assim vocês esta noite vão dormir na árvore para apanhar os
bandidos. Estão a ouvir? Sim senhor Sô Administrador! – a resposta. Sô
Administrador, ainda bem Sô Administrador está nos mandar então acaçar os
bandidos que estão na Kaála, já estão abusar muito (Cardoso, 2004, p.26).
As agressões sofridas pelos
“caminhantes” durante a noite nas proximidades da árvore denotam o
desequilíbrio, a violência que ameaça o domínio do Sô Administrador, do Sô
Padre e, por fim, do velho que sucumbiu nas águas, mas a árvore – símbolo de
resistência – permanece de pé.
O recurso estilístico maravilhoso é
usado por Boaventura Cardoso para explicar experiências oriundas da tradição
africana, mas também àquelas decorrentes de situações conflituosas como ocorre
na obra Maio, mês de Maria que
cenariza o fraccionismo. O romance apresenta fenômenos extraordinários, como
recuperação de enfermos, pessoas com poderes sobrenaturais como o empregado
Lusala que prevê o incêndio na casa do patrão, as mortes súbitas dos agentes
funerais e fiéis de N. S. de Fátima assustados a espera de milagres.
O ano de 1977 começa submerso num
universo de incertezas para todo o povo angolano. Numa reunião no palácio
presidencial, veio à tona o resultado do inquérito instaurado contra os
niilistas. No relato final, a comissão confirmou que havia um projeto
fraccionista. A partir deste fato, o Comitê Central incrimina e expulsa os
principais membros: Nito Alves e José Van Dunem. A malograda tentativa de
recolocar o MPLA no “trilho” da História, idealizada durante a guerra de
libertação, abre espaço para as ações repressivas do Estado, que leva ás
últimas consequências o desejo de silenciar os dissidentes. Por isso, “o
coração se enchia de muitas palavras que acabavam por não nascer” (Cardoso, 1997,
p.177) e só encontravam reforços nas preces a Nossa Senhora de Fátima, pois os
homens e mulheres “fervorosos” se alimentavam candidamente na fé que move desde
a década de 1960 a luta por um Estado angolano livre e igualitário, distinto
daquele repleto de cães que vêm
[...]
às centenas, se aproximando. Eh? Homens que transportavam o andor deram meia
volta e puseram a Santa voltada para os cães, como se estivesse à espera deles.
(...). De repente, quando que os cães estavam próximos dos quatro homens, a
Santa falou assim: VINDE EM PAZ! Que ela falou altissonante! Eh! Eh! Eh! Todo
mundo ouviu a Santa falar aquelas santas palavras. Que aconteceu depois foi
extraordinário. Cães começaram estavam se transformar em homens, bons cristãos
(Cardoso, 1997, p.227-8).
O real maravilhoso cenarizado em
Boaventura Cardoso remonta práticas culturais antigas com cenas que gera
espanto até mesmo ao grupo. No conto “A morte do velho Kipacaça”, os membros que
promovem o komba são surpreendidos durante a festa, pois o morto retorna para
dançar entre os seus. Segundo Todorov, o Fantástico gera “certa reação diante
do sobrenatural, mas também, ao próprio sobrenatural. Neste último caso,
dever-se-á ainda distinguir entre uma função
literária e uma função social do sobrenatural” (TODOROV, 2004, p.166).
Verifica-se a função social do fantástico na cena seguinte:
[...]
no meio da queimada se vê homem em cima de pacaça de tamanho nunca visto. Tinha
tamanho gigante, chifres dourados, peito debruado, patas luzentes: a pacaça.
Eh! Quando a pacaça está próxima todo mundo atônito, Ehé! Ehé! Ehé! Em cima da
pacaça está um homem: é o velho Kipacaça! Ehé! Ehé! Ehé! Mam’é! Tem na volta
dele auréola luzidia. Amam’ééé! Pacaça se imobiliza, se agacha e Velho
Kipacaça, ar imponente, triunfante: desce, Ehé! Ehé! Ehé! Mam’é!
Eh!
Brioso, cartucheira cintada, arma na mão, Kipacaça atravessa mundo de gente lhe
olhando só, atormentada, ama’ééé!, e entra no quarto aonde está a viúva. Mana
Teresa, deitada na cama, não está se mexer. Entreabre os olhos mas não
reconhece o marido. Carpideiras, as velhas, têm vozes emudecidas e olhares
esbugalhados. Silêncio: fora e dentro de casa. Pouco depois vem cá fora e
pergunta em tom severo: - Porque é que deixaram de tocar?! – E ordena ngó: -
Continuem a tocar e a dançar! Kuatiça o ngoma! Venha a maxaxa! Cantem em
memória do Kipacaça, Rei dos caçadores. Cantem e dancem! Kuatiça o ngoma! Eu
estou morto!!! Katumbila é o nosso Kipacaça!
E o Velho Kipacaça entrou na roda dançante
(Cardoso, 2004, p.62-3).
O maravilhoso modifica o cenário,
gera um estranhamento e estabelece novas categorias para a realidade. Sendo
assim, o conto “O filho” do livro Momentos
de Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada
que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as
entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro,
que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola
valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual
afetivo conduz o desfecho do conto:
Na
sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao
tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao
sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a
si, ardendo não de febre, mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio
da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A
vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que
situação ridícula, não posso”.
Todavia
os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a
penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a
levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no
explodir tumultuoso do plasma. (...)
Foi,
na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo
inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias
mais tarde.
Do
carcomido ventre da esposa saiu um sardão vermelho que desapareceu por trás do
cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas (Morais,
2000, p. 13).
Numa perspectiva numerológica, o
sete é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as
mais primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o
número que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o
mal.
No conto “A seiva”, da mesma obra,
Fragata de Morais metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a
fertilização da mulher. Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na
inocência rural e na crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois
“o relâmpago quando desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos
ares, derrubando árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da
fertilização da terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30). Essa força sobrenatural oriunda do amor era
ponderada constantemente por Mbuta que:
Lembrava
as longas conversas com Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes
antigos, face à Bíblia, à palavra simples, mas pesada dos padres.
Convencera-se
por fim que, feitas bem as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar
a crença dos antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que
curava leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com
uma mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros,
ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para
reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por
outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000,
p.32).
O questionamento feito por Mbuta
acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas
experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se
origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo fortalecedor
do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge acerca do
batismo de seu bisavô materno:
Jorge
contou que seu bisavô materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João
Patrício pelo padre, por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente
de Deus na terra, agora que virara cristão, seu nome teria que ser em
consonância, nada desses nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam
dizer. Kiavulo, que desejava aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese.
Algum tempo depois, entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe
era vedado comer carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como
então exigia ser chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se
para a comer, quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia.
Mas como a fome não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João
Patrício agarrou no bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do
rio, fazendo o sinal da cruz sobre o mesmo.
‘Se
Kiavulo ser agora João Patrício, tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer,
mim também’, sentenciou para paz de sua consciência (Morais, 2000, p.32).
Num ritual que envolve preceitos e
quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de
sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de
um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como
nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma
sucessão de fatos extraordinários:
Jorge
Torres, atordoado pela voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs.
Apertou-a com paixão e preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu
desnudar-se.
Quanto
a Mbuta, já há algum tempo que partira da casa da lenha. Só o corpo restara,
cada vez mais abraçado a Jorge.
Sua
essência descia enroscada pelo poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das
mãos e dos pés das mulheres em seus cânticos de fertilidade.
Silenciosa,
feita serpente maior do que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado
que, de olhos cerrados e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a
asfixia que sentia não se devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas
sim ao aperto premente da cobra em si enroscada.
Quando
sentiu o ar faltar-lhe por completo, no momento excruciante do orgasmo, já
roxo, seus olhos esbugalhados viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua
bifurcada silvante.
Despedindo-se
no último beijo de amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo
inanimado amassado.
A
serpente desenroscou-se e rastejou silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao
longe, os contratados tocavam seus batuques dolentes que falavam das saudades
da terra e dos familiares (Morais, 2000, p.34).
Nos contos de Fragata de Morais, o
real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações
totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário
sobrenatural.
O estilo maravilhoso de que fala
Carpentier no livro O reino deste mundo
(CARPENTIER, 2009, p. 10) não é
privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que imprimiu suas marcas
e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira de uma cosmogonia
ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem um arcabouço
fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma elaborada
estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de
passagem de um ente querido em Angola.
A performance experimentada pelos
personagens do conto “A morte do velho Kipacaça”, de Boaventura Cardoso, bem
como do ritual amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo
em performance, conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance, recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor
performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual. O que
nos leva aqui a buscar a fala de Boaventura Cardoso acerca do ritmo como marca
constitutiva de sua obra:
Mais
que a música, eu diria o ritmo, que é uma constante na cultura africana, já que
a nossa vida, enquanto africanos, é muito ritmada: seja o ritmo na narrativa,
ou o andar das pessoas, enfim, o ritmo da vida, a nossa vida. Nós temos muito
ritmo, mesmo! Então, é essa cadência rítmica que eu, talvez, de forma
consciente ou inconsciente acabo por imprimir aos textos. Na narrativa oral
esse ritmo é também dado a partir das repetições, que têm uma carga simbólica
muito forte. As interjeições que eu utilizo, abundantemente, por exemplo, em Mãe, materno mar, fi-lo
intencionalmente. Porque quando nós falamos, a nossa linguagem coloquial é
intermeada por muitas interjeições, de forma bastante diferente dos europeus,
que não usam muito isso. Isso tem a ver com nossa maneira de estar, de contar
as histórias com gestos, com muitas interjeições, enfim. E é um pouco isso que
eu procuro evidenciar em Mãe, materno
mar (CHAVES, MACÊDO, MATA, 2005, p.29).
O conto “Desencontros” de Fragata
de Morais, retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La
Cuenca y Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso,
Evaristo, o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:
Uma
noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu com
Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques.
Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito
de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de
encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu
uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais, 2000,
p.38).
Hernando de La Cuenca y Fraga
retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida e usa o corpo de
Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:
Evaristo
esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma
blasfêmia ouvir, não as palavras preferidas, mas a voz masculina e roufenha
gorgolejando pela boca da esposa.
“E
o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.
“A
tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra
de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da
pátria...”
“Minha
mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.
“Sim,
tua mulher!”
“Meus
Deus, que pesadelo!...”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo
é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários
Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha
família sabe que existi!...”, disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).
Os acontecimentos insólitos são
aqueles que não ocorrem com frequência, contrários às práticas sociais diárias,
logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos hábitos comuns dos
indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes historicamente de um
sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas como os homens se
relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros em uma determinada
cultura e em um determinado momento das distintas realidades sociais. Diante
disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário, termos comuns na
teoria dos gêneros literários quando se quer falar de Maravilhoso, Fantástico,
Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo” (GARCIA, 2007, p.19).
Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar nossas informações
acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o termo “natural”,
significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico, próprio do
instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível, provável
(FERREIRA, 1986, p. 1608).
O projeto literário angolano
contemporâneo conta com várias correntes, uma decorrência das mudanças sociais
e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009), o período pós-independência é
marcado literariamente pelos diversos e múltiplos processos de ruptura
conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num universo de
múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse experimentalismo conduziu
a trajetória artística dos diversos escritores angolanos. Assim, transitando
entre experiências tradicionais e fatos extraordinários Boaventura Cardoso e
Fragata de Morais produziram obras representativas das vertentes insólitas da
literatura angolana.
Bibliografia:
1 – CARDOSO, Boaventura da Silva. A morte do velho Kipacaça, Luanda:
Edições Maianga, 2004.
2 - ----. Mãe, materno mar. Luanda: Chá de Caxinde, 2001.
3 – Maio, mês de Maria. Porto: Campo das Letras, 1997.
4 – CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
5 – CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania &
MATA, Inocência. Boaventura Cardoso:
escrita em processo. São Paulo: Alameda,
União dos Escritores Angolanos, 2005.
6 – FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo dicionário da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
7 – GARCIA, Flavio (Org.). A banalização do insólito: questões de
gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2007.
8
– MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo.
Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.
9
– ---. O fantástico na prosa angolana.
Luanda: Mayamba, 2010.
10
– ---. A sonhar se fez verdade.
Luanda: Inic, 2003.
12
– - - -. A prece dos mal amados.
Porto: Campos das letras, 2005.
13 – Momento de ilusão. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.
14
– ----. Jindunguices. Luanda: Inald,
1999.
15
– ----. Como iam as velhas saber.
Luanda: Inald, s.d..
16 – ---. A seiva. Luanda:
Inald, s.d..
17
– ---. Amor de perdição. Luanda: Chá
de Caxinde, s.d..
18 – RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA,
Flavio (Org.) A banalização do insólito:
questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de
Janeiro: Dialogarts, 2007.
19 – TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
20
– ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção,
leitura. São Paulo: EDUC, 2000.
Mini-bibliografia
da autora:
Jurema Oliveira é
Professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área de Teoria
Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela
Universidade Federal Fluminense – Uff, desenvolve pesquisa na área de
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e publicou pela editora da Ufes –
Edufes em 2011 o livro intitulado Entre a
memória e a história: a poesia, um estudo sobre a poética insólita do
escritor angolano Adriano Botelho de Vasconcelos.
Subscrever:
Mensagens (Atom)