quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A SEIVA -CONTOS ANGOLANOS





O PADRE

Com aquela mania de sempre andar com um pequeno canivete nas mãos, usado para cortar as cabeças dos sardões menos lestos, ficara apodado de Zé Canivete. Não que fosse congenitamente maldoso, todavia o mato, a natureza, com suas leis inexoráveis, desenvolvia em nós crianças rurais, sensações e actos que se integravam plenamente na sua essência e manifestações.
Que diferença haveria entre um Louva-a-Deus a triturar em suas poderosas mandíbulas verdes uma cigarra, trinando angústia estrídula no despedir da vida, e o Zeca Canivete a agarrar o sardão para o decapitar a fim de que pudéssemos observar, com eterno pasmo e expectativa, o seu corpo estrebuchar?
O que poderá parecer insensibilidade, talvez sadismo precoce, era o exteriorizar das leis que a natureza revelava e imprimia subliminarmente. Se a inocência se caracterizava nos brinquedos de bordão que construíamos, a lâmina afiada na pedra era a possibilidade de domar o inexplicável, neste caso, a vida ou a morte, no mesmo rito que a cobra engolia o passarinho indefeso em encantamento.
No meio de todos os fantasmas, monstros e seres indescritíveis que a imaginação produzia, sentíamos sobremaneira a poesia da crueldade como sublimação das sensações. O subconsciente, transfigurado no medo ao relâmpago, por exemplo, era algo que não nos cabia entender, vinha dos primórdios do gesto humano. Em termos reais era-nos tão estranho quanto o haveria de ser para o sardão ao lhe ser cortada a cabeça. Deste modo, arremessávamos na balança da vida o contraponto dos valores, permitindo o seguir do curso natural de um rio ora mais fundo, ora mais raso, em queda, tormentoso ou sereno, conforme se afunilasse ou espraiasse. Se nosso crescer fosse suas margens, restava-nos aprender efectivamente se era o rio que as fazia, ou elas que o controlavam, que ditavam a personalidade da sua fluidez e caminhos.
Só mais tarde, muitos anos mais tarde, por paciência ou por imbecilidade, encontramos algumas das respostas que, quiçá, nos tranquilizem o suficiente para justificarmos o instinto, a agressividade do animal ainda tão perto da caverna há pouco abandonada. Na essência, os grunhidos continuam a sê-lo, mesmo se revestidos de suposta transcendência em relação ao primeiro momento do seu significado e propósito. Pouco nos separa das vibrações animalejas, dos medos naturais e primordiais, por muito seguros que nos vejamos nos caminhos já trilháveis da divinização humana, esboçando um pretenso entendimento do cosmos, enfim, daquilo do que para lá resta infindável. Continuaremos a grunhir, como grunhiu o primeiro, até ao dia em que arrogantemente se tente subjugar por completo a Natureza, pensando que suas leis, por mais domadas que estejam, sejam conquista da ciência sobre a metafísica, conquista do racional sobre o medo. E aí, ela se vingará da arrogância e da premeditação, e forçar-nos-á a olhar novamente para o umbigo com a humildade de quem redescobriu que é parte intrínseca e inalienável dela.
Por isso, para nós, o perigo estava no silêncio do mato porque um qualquer kifumbe nos poderia salta à frente no cafezal ou no bananal, coito das surucucus.
O silêncio ensurdecedor do mato é a mais terrível das sensações. Cortar a cabeça aos sardões era tão banal quanto chamar ao José Silva, Zeca Canivete. Em ambas as atitudes, havia uma evidente falta de imaginação, um seguir natural da acção, como a noite a seguir o dia. O resto, era abstracção. Eram os corpos dos sardões a retornar à decomposição, pelo nosso prazer infantil.
Nunca poderíamos, então, pensar ou julgar que, o atravessar do bananal medonho, os medos que sentíamos ao prever a aparição do kifumbe, seriam os mesmos ou mais profundos, ainda que conscientes, que o sardão sentiria ao ser caçado e agarrado e depois decapitado. Tanto nós quanto os sardões, perante este enigma e dilema comuns, fugíamos aterrados pelas picadas da selva, pois não tínhamos conhecimentos para saber que a Natureza, Deus, é um acto e uma criação do Medo, um gesto humano que nos leva a concentramo-nos sobre nós mesmos e nossa irrelevância universal, na busca perene do Equilíbrio.
E foi, quem sabe, por esses códigos naturais e imutáveis da Justiça, que Zeca Canivete, anos mais tarde, tornou-se padre e enlouqueceu numa prisão.
Teria ele uns dez anos quando o pároco da missão católica, a muito custo, conseguiu convencer a família a deixá-lo entrar para o seminário. A nossa perda foi incomensurável. Perdemos o irmão, um pedaço que se esvaía, um sopro a menos em nossas vidas. Quando tivemos a certeza de que ele partiria para sempre, apanhamos tantos sardões quanto possível e purgamos nossa frustração no ritual agora da orfandade precipitada.
Numa manhã de cacimbo vimo-lo subir para a carroçaria da carrinha do roceiro, rumo a Vila Salazar, onde apanharia o comboio para Luanda. Pela primeira vez, soubemos o que era o significado do sonho desfeito, afinal a vida tinha regras que não se compadeciam com o desordenado ritmar dos nossos corações imberbes. Nessa mesma noite sofri pesadelos terríveis, onde aparecia no meio de centenas de campas à berma da estrada, com um sardão em contorcionada agonia, encimando cada uma delas. E de longe, muito longe, em som diáfano, ouvi o riso de escárnio de Zeca Canivete, repercutindo pela floresta em cada árvore. Tive então a certeza de o amigo dilecto nunca mais voltaria, era o castigo personificado, as forças do mal desceriam sobre nós. Os sonhos, revelou-nos o mestre adivinho que consultamos, mostrava que corríamos perigo se continuássemos a cortar as cabeças dos sardões, também filhos da Natureza, portanto, da vida e de Deus. Os animais faziam parte da nossa vida no Mundo. Quando se sacrificava um galo ou um cabrito, mesmo um cão, para satisfazer a ira de um qualquer espírito zangado, era um gesto natural permitido. Todavia, sacrificar animais só pelo prazer de olhar para a morte sacolejando no corpo do bicho, poderia ser maléfico, no meio de muitos desses sardões, uns seriam conselheiros de Kalunga. Ele, o mestre, ainda na véspera ouvira uma galinha a tentar imitar um galo, deveríamos parar imediatamente com essas práticas, a partida do nosso amigo era um sinal claro do desagrado do mundo espiritual.
Perdemos o que nos restara da inocência, ao entrarmos no mundo invisível. O medo ao castigo desconhecido, passara a estar ali atrás de qualquer árvore.
No domingo, após a missa na missão, dirigimo-nos para o açude que existia na roça de um dos fazendeiros, laço encarnado amarrado no tornozelo, conforme instruções do mestre curandeiro, e lavamos a pemba encarnada que nos fora colocada pelo corpo. Não poderíamos ser apanhados assim publicamente, e juramos que se alguma vez o Zeca Canivete voltasse à aldeia, haveríamos de o denunciar como feiticeiro perigoso.
Mal sabíamos que José da Silva, anos mais tarde, seria efectivamente padre e um dos nomes na luta de libertação nacional. Acabou por ser desterrado para um campo de concentração onde, à força de questionar Deus sobre Suas estranhas maneiras de agir, veio-lhe repentinamente à mente a carnificina contra os sardões e, entendendo pela geometria do oposto o que questionava e o que fizera, percebeu a inutilidade da Consciência.
Nessa partícula do momento, enlouqueceu para todo o sempre. Viveu o resto da pouca vida que lhe coube amarrado, porque por duas vezes tentara cortar o seu próprio pescoço.

Fragata de Morais In “A Seiva – Contos Angolanos”, INALD


BATUQUE MUKONGO






17
Chegada a hora parti
do verde Cazengo
subi os morros do futuro
ja longe do meu quarto onde as manhãs
suplicavam nos dentes do meu avô
e reconstruiam o viveiro dos pássaros
as casas toscas dos macacos
o cantarolar de minha mãe
sobrepondo-se ao longínquo ruido
das máquinas do café junto ao secador
onde os meus pés
eram repasto das matacanhas
almoço dos mauindo
jantar das ovitakaia
naquela doce dor do coça-coça
que só acabava com o perfurar do saco
pela agulha mestra na mão de minha mãe
da lavadeira
ou qualquer outra mais velha
que me xingava
com longos muxoxos
a cheirar a tabaco
filho do branco com matacanh’ééé
não tem vegonha não tem vergonh’ééé
o mona yá mundele
naõ tem matacanha uevu
não podia ser africano
africano branco não existia
muito menos branco africano
branco africano não existia
pouca terra pouca terra
pouca terra
para uma longa guerra fera
sentiam que branco africano
era de pouca sobra
era filho da cobra
sem espaço nessa obra
mas estes tinham um braço negro
e pouca terra pouca terra
não mais foi quimera
desceram o rio
subiram a serra
sentiram frio
conheceram o medo
aprenderam feitiços
conheceram chirangas
envolveram-se de missangas
e artes de fechar o corpo
para nunca ser morto
pelos poros abertos
penetrou na mente
a frescura da nova semente
a nova África na forja
mão negra na mao branca
no coração de Angola
na luta pela mesma mãe
feita de terra vermelha
de onde saía trémulo o salalé logo jinguna
de onde caiam das árvores
as larvas aleitadas
em katatu transfomadas
tudo eles beberam
tudo eles comeram
chupados os ossos
arrotado o marufu
lambidos os dedos
vencidos os medos
andaram por todos os caminhos
mão de branco na mão negra
abriram sulcos perenes
na terra esventrada
no zunir sibilante da bala inimiga
no vup vup vup das pás circulantes
dos helicópteros traiçoeiros
vup vup vup para a morte
vup vup vup para a vida
vup vup vup para os sem sorte
chamados para outro norte
vup vup vup asas de metal
enchidos de balas os corpos dos feridos
o medo estampado no esgar
do soldado que mal compreendia
porque matava em terra alheia
gente que mal não lhe fizera
e os olhos vitros dos mortos
colados perdidos no caleidoscópio
das pás girantes das aves metálicas
vup vup vup
desafiando o tempo
pelo fio dos anos
a reinventarem a História
olhares dos antepassados
chamados pelo batuque
do colono vup vup vup
em pás girantes
nas sombras da noite africana
nos caminhos dos pirilampos
acende-apaga
acende-apaga
almas errantes dos que morrerm longe do umbigo
de todos os umbigos da bela pátria anunciada
numa estrela de amarelo brilhante
em bandeira negro-rubra feita pátria
tecida com fiapos de dor
amor e esplendor
sangue escorrido
nos trilhos cambaleantes
onde irmãos se perderam
peões dum mundo alheio
nem preto nem branco
degladiando-se pelo ovo por nascer
defendendo visões não suas
com o abismo sempre a crescer
cavado pelo odor do petróleo
ofuscado pelo brilho dos diamantes
África órfã de mãe
África apagada no horizonte do sofrimento
empurrada para ravinas profundas
ravina capitalista
ravina marxista
ravina leninista
rasgando teus seios mãe África
de chirangas brancos
tocando chingufos africanos
escavando de tuas entranhas
minérios de ti incógnitos
África pouca terra
pouca terra pouca terra pouca terra

INKUNA MINHA TERRA - CONTOS





AMORES
Uma brusca lufada de ar quebrou uma asa à gaivota, lançando-a para o gelo do canal, onde ficou volteando, atordoada. Vários transeuntes junto à ponte buscavam vias de a salvar, todavia a T fustigava as ruas de Amesterdão. Ruas estreitas, calcetadas e escorregadias, ladeando os canais ora gelados, impedindo a navegação das pequenas embarcações que os utilizavam. Às largas barcaças, sobrava o rio Amstel, pontilhado de blocos de gelo quebrado.
     No conforto ameno da residência, uma pequena cave de dois quartos na Prinsengracht,  Lito Boal lia uma revista cinéfila, quando a campainha da porta ressoou com insistência. Apressou-se a abrir, pois sabia que nevava e estava frio. Para seu agrado, viu Samu Lenga entrar, exsudando alegria. Abraçaram-se mesmo antes do amigo retirar as luvas, o cachecol e o pesado casaco que o protegiam.
     “De onde vens?”, perguntou Lito Boal feliz de rever Samu.
     “Acabei de chegar de Estocolmo. E contigo, como vão as coisas?”
    Samu Lenga, na casa dos trinta, o rosto meio tapado por uma espessa e escura barba que tipificava o guerrilheiro, era o retrato do quadro dinâmico que fizera vários anos nas diversas frentes da luta contra o colonialismo português. Pela integridade moral e política, pelo multifacetado trabalho desenvolvido nas diversas frentes e pelo domínio de vários idiomas, fora agraciado com o novo posto. A luta emancipalista entrara em fase mais desenvolvida e dinâmica, e tornava-se necessário alguém do seu porte, a nível dos países europeus. A Suécia reconhecia e apoiava directamente vários movimentos africanos, permitindo deste modo a instalação de uma delegação que cobria os países nórdicos.
     Lito Boal conhecera Samu Lenga ao ser instruído pela direcção do movimento para se aí se apresentar. Uma forte amizade os uniu de imediato.
     Por fim sentados, e com uma chávena de chocolate quente nas mãos, a conversa voltou-se inevitavelmente para Inkuna, a luta libertadora e últimos desenvolvimentos. Depois das questões de maior interesse e mais imediatas terem sido abordadas, Samu tirou dum envelope castanho grande, um maço de fotografias recentes e mostrou-as ao amigo.
Singularizavam momentos da vida dos guerrilheiros, nas matas. Ao olhar para uma delas, o coração de Lito Boal quase parou de bater. Numa clareira rodeada de pequenas árvores, um grupo de guerrilheiros repousava distraído, excepto uma jovem que, de costas, voltara a cabeça como se chamada naquele instante. Sua boca semiaberta, os olhos grandes e vivos como a luz do sol, emanavam toda uma beleza e tranquilidade que contrastavam com a metralhadora pousada no colo. A imagem produzia um efeito forte. Talvez pela carga emocional da fotografia, que no fundo condensava toda uma aspiração pessoal, Lito Boal apaixonou-se naquele momento.
     “Meu Deus, Samu, quem é esta miúda? Que coisa mais linda!”, perguntou exultante
    “É a Dalila. Para além de ter sido seu instrutor, por coincidência até tirei a fotografia. Tínhamos acabado de regressar de um ataque a um posto português”, informou.
     “Que maravilha! Posso escrever-lhe?”
   “Se o fizeres brevemente, ainda és capaz de a apanhar em Dar-Es-Salaam onde de momento aguarda a ida para Leningrado. Vai estudar na União Soviética”.
     Na manhã seguinte, foi um dos primeiros gestos seus. Sentou-se e redigiu uma carta a Dalila, na qual mencionava que vira a sua fotografia quando Samu Lenga o visitara, e que se quedara bastante impressionado com o que o retracto transmitia. Estava de momento a estudar cinema na Holanda, e dentro de mais três anos, uma vez terminada a Academia, iria apresentar-se em Dar. Caso fosse possível, tentaria visitá-la um dia em Leninegrado. Entretanto, ser-lhe-ia muito grato corresponderem-se.
     Durante meses viveu na esperança de uma resposta, de uma aceitação que lhe permitisse encetar uma amizade, embora que à distância. Pensou escrever uma segunda carta, só não o fazendo, por duvidar do paradeiro de Dalila. Quando já interiorizara que gesto fora uma infantilidade, eis que chega um subscrito da União Soviética. Sobressaltou-se de ansiedade, só poderia ser a resposta. E de facto assim o era. Dalila informava-o da surpresa que tivera, nunca houvera recebido carta de ninguém, muito menos da Europa ou da Holanda, lugares que só ouvira falar nas notícias. Que tivera problemas com os camaradas da segurança do movimento, mas logo se tranquilizaram quando mandou o chefe abrir o envelope e ler, para todos, o que lá estava escrito. À parte disso, que teria grande alegria em escrever-lhe, e prometia que responderia a todas as cartas que dele recebesse. Com a missiva, enviara uma fotografia pequena, a cores.
     Ao longo de dois anos mantiveram a correspondência, como namorados que o destino separa contra suas vontades. Sem se conhecerem, foram entregando retalhos de suas vidas um ao outro, moldando um sonho que os uniria talvez um dia nas matas de Inkuna. Lito Boal ainda tentou deslocar-se a Leninegrado, todavia a pequena bolsa de refugiado não permitia pagar os 50 dólares diários, que as autoridades soviéticas exigiam aos estrangeiros.
     Mais dois anos decorreram até que finalmente se conheceram no Palácio do Povo, em Katola, quando o presidente da república, e comandante-em-chefe das forças armadas, impunha as primeiras patentes aos seus antigos comandantes, agora oficiais superiores de um exército nacional. Através do visor da máquina de filmar, Lito Boal descobriu o rosto de Dalila ao lado de um dos antigos comandantes de coluna. Eufórico dirigiu-se a ela, que de imediato o reconheceu. Abraçaram-se, no amplexo de quatro anos de amizade platónica.
     Samu Lenga que tudo observara, sorriu ao virar-se para receber o abraço de um antigo companheiro de luta.
     Dalila e Lito Boal recolheram para um canto e falaram. Do momento que se vivia, da pátria livre, do sonho realizado e, por fim, de como ele gostaria que se vissem.
     De longe, o comandante ao lado de quem Dalila estivera, observava-os com curiosidade.     
     Dalila afagou-lhe o rosto, beijou-o na face e disse que gostava muito dele, mas que tinha homem, era aquele comandante que ele vira a seu lado, e apontou, o que fez o mesmo desviar rápido o olhar. Enfatizou que a amizade carinhosa deles, mantida por carta, era uma chama que primeiramente a envaidecera, e que mais tarde se tornara numa afeição real e sincera, algo muito especial e íntimo, mas que nunca poderia ter sido mais do que fora, por não se conhecerem no fundo. Quando na União Soviética, a vida continuara, não parara na beleza do gesto dele, nem na necessidade dela de afecto e carinho, sobretudo porque tão longe da pátria e em país tão diferente. Muitos dos seus companheiros de guerrilha estudaram com ela, daí a ligação que, mais tarde, acabou por estabelecer com o comandante seu homem.
     Lito Boal viu o devaneio antigo fenecer, confirmando que os rumos da vida e aqueles do sonho, raramente convergem. Propôs-lhe que se mantivessem amigos, e quando por fim arranjou mulher, Dalila tornou-se achegada da casa e da família que começou a ser construída.
     Porém, nunca pararam de se escrever. Coisa só deles conhecida, comparsas num segredo. O desejo de perpetrarem, ou melhor, de não abandonarem o elo que sempre os unira num sentimento de cumplicidade, levou-os, sem que nenhum o tivesse mencionado, a tocarem-se daquela forma. De vez em quando, um recebia um bilhetinho, uma nota, do outro. Não se poderiam negar por completo, sempre quedava a nostalgia que todos os passados consigo carregam.
     Os anos passaram, Dalila perdeu o esposo, tornou a casar, alargou a família e, quinze anos mais tarde divorciou-se do marido.
     Lito Boal, por sua vez, ao fim de vinte anos de união, separou-se da mulher.
     Livres, não ousaram admitir que o rio secara e, frustrados, intimamente desiludidos com o destino, não desejaram olhar para o que restara, as pedras nuas no fundo de um leito pouco profundo, onde o casco de um amor que nunca merecera a confirmação de o ser, soçobrara, por desígnios impenetráveis. Intuíam que se os fados assim o impuseram, seria porque quem tece as teias da vida, não aquiesceu a que algum dia vivessem juntos, sombras separadas e jamais tangentes, num céu insensível.
     E, cada em seu canto, continuaram a correspondência, por inconsciente vingança e amor-próprio, cientes de que o que estava feito estava feito.