LUÍS
KANDJIMBO,
Um dos raros
escritores da sua geração que se dedica ao ensaio e à crítica literária, com
obra publicada no domínio poético e ensaio e crítica. Estreia-se com O
Noctívago e outras estórias de um benguelense, de onde foi retirado este conto,
na ficção narrativa, demonstrando a sua multiplicidade de interesses no domínio
da criação literária.
O
ARTESÃO DE FOGAREIROS
O homem tinha um
rosto magro. Imberbe, sempre luzidio e suado. Uma armadura dentária irregular,
possuída pela nicotina de tabaco ambundu. Apresentava uma deficiência no pé
esquerdo. Pisava o chão com o calcanhar.
Atraía a
simpatia dos alunos que todos os dias, quando saíam da escola, à mesma hora
encaravam a sua hilariante figura. O homem que passava com fogareiros. Os
rapazes admiravam a sua capacidade criativa gravada naqueles objectos
utilitários. Por isso, lhe chamavam kapuka numa comparação com um verme
predador de cereais que construía o seu próprio casulo e se deslocava fazendo
contracções em movimentos sobre a superfície das folhas.
“Olha o tio
Kapuka”, apupavam os miúdos.
Quando começou a
fazer aquele novo trajecto, arremessava-lhes pedras. Tudo foi mudando até que
se tornou amigos deles. Acontecia às vezes o negócio não corria bem.
Lhes
disparatava.
“Tio Kapuka”,
dizia um garoto.
“Dos
fogareiros”, respondiam os outros em coro.
E le parava. E
uma algaraviada pronunciava impropérios obscenos.
“Néfè ya
nyoho.Tupa lya só”.
Nas vezes que
ganhava dinheiro suficiente nas suas vendas ambulantes, passava bêbado. Falava
como se tivesse água na boca. Trajando calças inundadas de remendos cosidos à mão
na estatura de assim– assim, como chapéu, calçado do lohakus, carregava ao
ombro um avara em que pendiam o saquito do farnel a corda de amarrar os fogareiros.
Fazia esse percurso várias vezes por semana, sem contar os desvios para fazer cobranças
de dívidas antigas a mulheres que levavam muito tempo a pagar, ultrapassando os
prazos de propósito. O artesão chegava a pensar que elas não davam importância às
suas necessidades de dinheiro. Um dia foi exigir pagamento imediato a uma dona
de casa que no dia da cobrança não tinha. Já iam muitos dias de adiamentos. Não
hesitou em dizer que não saía do quintal, enquanto não pagasse. Ameaçou mesmo:
“Se você não me pagar, vou falar no teu marido que te vi nas bananeiras do
Tomba dormir com guarda da horta no troco de dois cachos de banana”. A dona de
casa sentiu a ameaça como se tivesse sido violentamente penhada. Conhecia o
atrevimento e ousadia do artesão. Resolveu pagar a dívida.
O Kapuka dos
fogareiros, como lhe chamavam os miúdos, morava na periferia do bairro, no
limite com uma damba que descia para a ravina e imediações da lixeira grande,
onde eram depositados restos industriais da cidade e as águas residuais do saneamento.
Os outros artesãos que vendiam na praça não duvidavam da sua vantajosa situação.
Lhe invejavam só quando os clientes pediam modelos à Kapuka. Tinha à
disposição tudo,
desde chapas a latas das embalagens e outros serralharias para fabricar
fogareiros de
diferente qualidade.
Na sua oficina
era frequentemente visitado por algumas clientes que encomendavam fogareiros
para três ou quatro panelas ou ainda fogareiros especiais para as festas.
Nestes casos só
podiam ser as vendedoras de sarrabulho, milho ou então bares e restaurantes que
faziam grelhados. Como estas encomendas requeriam muitos artifícios, só assim
recorria a materiais que tinha de adquirir nas lojas da Kamunda e nas drogarias
do centro comercial da cidade. Deslocava-se por esses motivos para adquirir
estanho, ácido, algumas ferramentas. O ferro de soldar quem lhe arranjava era
um serralheiro da Metalúrgicas RL
E m troca fazia
a entrega de um fogareiro de modelo novo.
Uma vez
apareceu-lhe a fazer encomendas uma mulher chamada Kuva. Pediu insistentemente que lhe fizesse um fogareiro
de modelo novo. O mestre tinha no momento vinte e seis fogareiros para entregar
na semana seguinte, tirando os que eram destinados à venda ambulante. Não podia
receber mais nenhuma encomenda.
A mulher
insistiu, acabando por propôr como contrapartida dormir com ele e ficar amante
dele. Morar com ele, até quando não quisesse mais.
O artesão fixou
demoradamente o rosto dela, a ver se lia algum sinal de seriedade. E pensava
“Um fogareiro pedido por uma mulher é porque merece respeito. Um fogareiro
é sempre sinal
de responsabilidade pelo fogo da família, marido e filhos. Para que servirá então,
se está me falar para ser minha mulher? Uma proposta assim só desafia as minhas
vontades. Mas ela é atrevida. Está a vir falar com um homem solteiro como eu,
que não precisa mulher para durar muito tempo. Mulheres assim não te deixam
trabalhar livremente.
Toma cuidado
homem: um batuque em a pessoa que toca bonha, é porque não falta muito para
rebentar no momento da dança. Pode ser como esta mulher. Não preciso ir muito
longe. Aquela que tinha aqui aparecido pedindo um fogareiro grande para fazer pasteis,
tinha feito a mesma coisa. Ah! Aquela tinha vindo do mato e não era de cá. Esta
aqui não! É
daqui. Mas como ela quer ficar comigo, aceito. Daqui há mais uns dias
certamente vou descobrir o fundo. Mas não sei me vai causar humbula e problemas
como aquela outra que afinal tinha filhos grandes e me vieram dar aquela
porrada”.
“Não fala assim,
fachavor”, disse o artesão. Entrou para o interior da sua cabana.
Ela acompanhou,
depois de combinarem o que restava. Mas continuava na dúvida se já a conhecia
ou não. Lembrou-se que já lhe tinha encontrado em algum lugar. Foi nas cinzas
ou num óbito mesmo em que ele não era conhecido. Atraído pelo choro das carpideiras,
aproximou-se da casa. Entrou e sentou-se num dos banquinhos. Partilhava a dor
com os parentes e amigos do defunto. Estava à vontade, tinham-lhes servido uma caneca
duma bebida qualquer. Viu entrar uma mulher escura, que não era muito alta, exibindo
sinais de uma fresca agressão No mesmo instante entraram dois rapazes do grupo
que lhe tinha violado.
Notara que ela
trazia o vestido empoeirado nas costas. Aquele momento lhe causou uma forte
impressão de pena porque os que conheciam teceram comentários, outros lhe
zombaram.
A mulher só
passou três noites com o Kapuka dos fogareiros. No dia que seria o quarto,
o artesão desaparecera. O corpo dele viria a ser encontrado golpeado de
punhaladas, uma das quais o pescoço. O que teria motivado o assassino?
Ninguém sabia. Corriam dias chuvosos. Parecia que se ia fazer um óbito
anónimo. Mas apareceu um primo vindo das terras de origem. Para a
curiosidade dos amigos e admiradores descreveu a biografia do artesão.
Era descendente de uma numerosa família de ávidos e prósperos
agricultores. Foi busca do desconhecido que o levou até à cidade litoral onde
decidira morrer.” “Quanto mais aventuras nos acontecem numa terra, mais
fortes são as raízes que a ela nos prendem. É por isso que ele morreu
assim, talvez o assassino sabia que amando a aventura, ele não se
importava com a morte. Para ele é como mais velhos dizem: o pano que é
bonito passa por ti quando estás na lavra, mas se fores homem de trabalho
livras-te desse pesadelo”. – Disse o primo.
Os instigadores
do assassino podiam ser descobertos entre os rancorosos devedores como aquela
dona de casa que se considerou penhada com a ameaça de denúncia do artesão. “Me
denunciar na presença do meu marido sobre as pragas minha vida!
Isto não é só
nosso azar?” Foi assim que a mulher terminara o seu lamento diante do amante, o
guarda da horta, de que falara o artesão.
A maldade dessa
mulher era conhecida. Não só pela sua fama de infiel mas também por causa da
humbula que contraíra, cuja cura só conseguiu num cimbanda da Equimina. Outras
proezas compunham o seu perfil. A dedicação aos assuntos domésticos era uma
forma de mostrar que a sua laboriosidade comparava-se a outras mulheres.
Não fazia isso
só assim. Raramente lhe ocorria admitir fracasso dos meios que utilizava mulheres
para atingir os desígnios. Nunca ninguém lhe tinha feito ameaça semelhante.
Foi um desafio
que em silêncio se transforma para si num caso de vida ou de morte.
Na noite do
enterro, assistiu-se a um a luta entre duas mulheres, Kuva, a que passara as
últimas três noites com artesão e essa devedora adúltera que o artesão ameaça denunciar.
Com o seu instinto de maldade foi lá celebrar a sua vingança.
“Pode ser essa
mulher que mandou lhe matar. Eu sei porque ele me disse que nunca mais ia fiar
fogareiros nas pessoas como essa ciwaya. Essa mulher anda fazer muitas poucas vergonhas.
Essa mesmo! Como é que o Kapuka lhe encontraram morto nas capilas das hortas do
Cavaco, se o tal homem dela trabalha na horta? Estão ouvir? É essa mulher que mandou
lhe matar”, vociferava a última amante do Kapuka dos fogareiros.
Quando os miúdos
daquela escola chegaram no óbito, ninguém contava. Elas foram porque na
brincadeira tinham cultivado uma profunda estima pelo artesão de fogareiros.
Quem é que tinha mandado matar o amigo deles? É isso que queriam descobrir.
No mesmo dia que
o corpo do Kapuka apareceu morto, um deles achou que qualquer coisa ia
acontecer.
“Epá! Eu hoje
estou só assim parece que vai acontecer alguma coisa. Vocês já deram conta que
o mais velho Kapuka hoje não passou!”.
O uviram aquela
discussão. Também pensavam que a morte do artesão tinha a cumplicidade de um
cliente qualquer.
In O
Noctívago e outras estórias de um benguelense,
Editorial Nzila, 2000