segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS



DE HOMENS, PORCOS E OVELHAS

Não deixei de sorrir ao ler nas “Curiosidades” do Jornal de Angola, sobre a prisão de um homem por ter tido relações sexuais com um porco.
Imaginem!
Tantas foram as questões que se me colocaram e a tal velocidade, que por fim já não sabia como chegar a uma conclusão.
Tentei ver os direitos do cidadão suinófilo, e verifiquei que cada um come do que gosta, ainda por cima se for carne de porco.
Tentei ser magnânimo e defender a honra violada do porco, pôr na balança o peso do seu predestino, indagando-me se não viria a sofrer muito mais no facão, chegada a altura.
Achei, portanto, que o porco, se tivesse visão, deveria ter mantido aquele relacionamento na clandestinidade e não ter nada de que se ter posto para ali aos gritos, sem o mínimo de pudor. Todos conhecemos quanto grita um suíno, ainda por cima norte-americano, bem alimentado, 56 quilos de alta e vitaminada ração, cientificamente preparada, e de fazer inveja, em termos de proteínas, à alimentação de muita criança mundo afora.
Se decidiu bater com a língua nos dentes e desatar a gritar exactamente no momento em que a mana do pacato Austin Gullette passava, dando a conhecer ao mundo aquele amor incompreendido e viril, o que esperava?
Outra questão que me transcendeu, foi a da irmã (não é mencionado o nome da delatora) ter ficado envergonhada por nunca ter visto na vida dela alguém fazer aquilo a um animal indefeso.
Foi essa a palavra, indefeso, que de imediato fez acender uma luz de protesto. E se o animal não estivesse nessa situação de indefeso, teria sido uma porcaria permitida?
É que quando toca a questões de quintas, fazendas e seus animais, incluindo as galinhas, fica-nos muito espaço para a imaginação.
Recordo-me, estava eu a estudar na então metrópole, isto em 1958, e de ter feito uma pequena excursão, nas férias do verão, pelos Alentejos, o que me leva a evocar dois acontecimentos.
O primeiro, era que viajar à boleia naqueles anos em Portugal, era quase um exercício em futilidade, devo ter feito mais quilómetros a andar a pé de que de carro. Por isso tive muito tempo para ir apreciando os campos de trigo à berma das estradas.
O segundo, foi aquele que aqui vos vou relatar, como sustentação à minha indignação de ter sabido que um coitado de um veterinário qualquer, a pedido da irmã megera, teve que abandonar as delícias do seu consultório para vir examinar a vergonha ultrajada do suíno que, após o caso, começou a viver uma vida de miséria da qual só a misericórdia do facão o salvará. Imaginem, deu para andar a esconder-se à toa por tudo que é canto, e estar sempre assustado. Talvez a irmã do coitado do Austin decida submeter o porco a um tratamento psicanalítico para ver se recupera a saúde mental. Caso contrário, só lhe restará mesmo mandar fazer dele torresmos.
Mas voltando ao porco frio, já que a estória não mete vaca, estava eu encostado a uma cerca à espera de que aparecesse uma alma caridosa ao volante de um carro que me levasse mais para o sul, quando dou por um homem a ceifar o trigo ou centeio, não distingo um do outro, junto à estrada Ao fim de umas horas, durante as quais não passou carro nenhum, notei que o mesmo ceifara uma grande parte da área plantada, mas deixara duas pequenas zonas em que não tocara. Quando se aproximou, talvez para me informar que por ali raramente passariam viaturas, não resisti à curiosidade e indaguei porque havia poupado aqueles espaços?
“Por razões sentimentais.”, Respondeu.
“Desculpe, razões sentimentais?”
“Sim. Olhe naquele espaço maior, foi onde tive a minha primeira experiência sexual, talvez com a sua idade.”, Retorquiu, com um sorriso de quem se lembra de memória grata.
Curioso, perguntei pelo outro espaço não ceifado.
“Ah, ali foi de onde a mãe dela olhava!...”
“O quê? A mãe dela?”, perguntei, perplexo.
“Sim”
“E não disse nada?”, insisti, não querendo acreditar.
“Disse”
“E o que disse ela?”, continuei, a pensar que estava a gozar com a minha cara.
“Béééééééé!...”
Não imaginam pois, caros leitores, como fiquei quando li sobre o coitado do Austin e da sua possível prisão de cinco anos. Tivesse sido no Alentejo, ninguém se preocuparia. Esses americanos têm a mania de que têm que estar sempre à frente de tudo, até porque, segundo as palavras do xerife lá do sítio, o senhor Royce Toney, que colocou o suninófilo atrás das grades, já havia relatos de casos parecidos envolvendo cães, macacos e ovelhas, enfim, a banalidade diária. Mas com porcos?!....
12/09/04

A SONHAR SE FEZ VERDADE - CONTOS JUVENIS














O SONHO

Por volta dos meus cinco anos, costumava aprisionar uns gafanhotos castanhos gigantes que, ao voarem, ufanavam presunçosos suas belas asas de seda avermelhadas de um amarelo diáfano. Segurava-os com mestria e confrontava-os boca contra boca, tenaz frente a tenaz, voracidade mastigando voracidade. Assim passava eu horas em encarnadas e sangrentas batalhas que ouvira da boca dos avós, nos contos das noites de sunguila (conversa). Ou nos jogos de crianças mais velhas, reconstruindo qualquer feito de qualquer herói da memória colectiva.
Uma águia-real pairou sobre o ninho em círculos concêntricos, e o vento aportou seus pios estrídulos de amor. Reconheci nela o amigo que tantas e tantas vezes sobrevoava, alto nas nuvens, a nossa senzala. Em voo picado baixou até desaparecer no horizonte e, pela primeira vez ao olhar para baixo, vi uma paisagem até ora por mim despercebida. Vi, perplexo, a embocadura de um rio voraz que espraiava, mar adentro, ruidosamente. Desorientado, procurei pela senzala familiar, o casarão do roceiro, os terreiros do café, qualquer coisa tranquilizante, qualquer cheiro conhecido.
Nada!...
Só rio, água do rio e aquela massa infindável que eu então julgava ser um grande lago, do qual não apercebia o fim. Espremi os olhos e vislumbrei três pontos pequeninos que avolumaram ao passo da aproximação. Maravilhei, nunca houvera visto embarcações de tal tamanho, barcos que nunca sonhara existir, gigantes bojudos das águas com línguas soltas ao vento.
A selva logo se manifestou no ribombar dos tambores coma a notícia estranha. Os ecos percorreram céleres caminhos montanhosos até à capital do reino. E ali, os corações encheram-se de alegrias e receios, enquanto aguardavam por mais notícias. Pela embocadura adentro desfilaram as caravelas. Nas margens, as gentes, vindas de perto e de longe, uns a pé, outros de canoas velozmente impulsionadas por braços sinuosos e decididos, aguardaram atrás d chefe local, que trajara suas peles de leopardo, adornara a real cabeça e segurava determinado a lança, os dentes da onça pendurados em argola no pescoço, oferendando-lhe ar imponente, desabrigado e senhoril.
Os velhos preocuparam-se e, de rostos contritos, buscavam um sinal da expressão do mfumu (chefe). Este, vendo-lhes a preocupação, levantou a lança e disse-lhes:
- Enti uwende emavungu, kewatembelanga ko. (A cadeira, trono, na qual o chefe se senta, não estremece - A autoridade de um chefe é inabalável)
As crianças corriam espalhafatosamente até ao rebordo da praia, corpos nus, luzidios negando o chamamento das mães temerosas, as praias engrossando com a chegada de novas gentes, admiradas e assustadas. A maioria ficava pelo rebordo da mata. Por fim, à medida que os monstros marinhos se aproximavam, línguas de pano desfraldadas em arrogância, as crianças foram chamadas e recolhidas. O mestre nganga (curandeiro), observando um milhafre voar razante com um rato morto nas garras, predisse augúrios e maus presságios, desaconselhando o fascinado chefe:
- Ngandu didi muntu, mfundu ba na mamba O crocodilo comeu um homem em conivência com a água – Há perigos que são misteriosos), disse.
O povo inteiro acocorou-se no mato quando do bojo do monstro marinho saíram pequenas embarcações, repletas de gente, que pousaram na água. De longe, as cordas que as sustinham não eram enxergadas e todos acreditaram da descensão maravilhosa, anúncio do poder dos estranhos, deuses albinos. O rato morto caiu aos pés do mfumu, largado pelo milhafre que ainda circulava em cima, talvez ele igualmente espantado.
Os estranhos remaram vigorosamente para a praia, lanças enormes reluzindo ao sol.
As crianças, mal dominando o medo, irromperam em choros e prantos descontrolados, gritos de bicho acossado. As mulheres deitaram a fugir com as crias, como puderam, enquanto os homens colaram os corpos quase nus ao capim vergado. Só o mfumu e mais alguns se quedaram erectos.
Que seres seriam aqueles, tão estranhamente trajados e de pele que nunca recebera o sol? Divindades das águas? Estava anunciado que a salvação do reino do Congo viria de seres albinos, seria esta a hora? Se não fosse, só poderiam ser seres doentios, feras ou divindades malignas esconjuradas pelas rezas e artes ineficazes do nganga, que urgia o chefe a desbaratá-los com o seu espanta raios.
Este, fascinado pelos adornos jamais vistos, pensava que com eles poderia ser a inveja dos chefes vizinhos. Em gesto ousado e corajoso, mostrou-se de longe, sua imponência e ar arrogante anunciando a condição de realeza. Ainda que amedrontados, os nobres imediatamente o seguiram, precedidos pelo conselho de anciãos.
Lá em cima, na tranquilidade do ninho da mbemba (Águia das palmeiras), admirei a coragem dos homens enfrentando aqueles que ainda não sabiam ser o pior dos monstros existentes. Monstro que durante longos e ignóbeis séculos iria alimentar-se na inocência e pureza que agora os recebia. Que regalar-se-ia pantagruelicamente no seu sangue, sofrimento, humilhação e morte. Como desejei poder descer e avisar, gritar com todas as minhas forças de criança que trespassassem imediatamente com suas setas a cobra venenosa que lhes acenava encantos jamais vistos, o mundo maravilhosos do arco-íris.
O nganga contorcionava-se em pasmos de agonia, espuma esvaindo-se-lhe da boca que murmurava sons ininteligíveis. Certamente que pedia, em suas pragas, que o chefe os não recebesse. Talvez sentindo o poder ameaçado, vi-as como curandeiros mais fortes e ferozes, contra os quais desconhecia medicinas.
- Nyoka kababakilanga ya ko ha kati kati (Ninguém segura uma cobra pelo meio – A confrontação desnecessária do perigo pode trazer consequências) - afirmou de novo o nganga.
Que impotente e só me sentia, mero espectador fascinado pela visão do futuro e horrorizado pelo conhecimento do presente.
Os estranhos, os brancos, aperceberam-se do chefe e sua comitiva e acenaram gestos amigáveis, todavia as lanças ríspidas para a defesa. Ordenaram que viessem uns baús e, em acto de magia e feitiços, panos coloridos, quinquilharia da mais variada, miçangas, argolas, sacos e sacolas, espelhos, colares e pentes, flautas e instrumentos de corda pronto rodopiaram no ar em cumplicidades multicoloridas, fascinantes e convidativas. Buzinas, apitos, badalos e tamboretes que encantaram de modo irremediável o próprio nganga.
E o transe hipnótico atraiu inexoravelmente o povo.
As peles trajadas do leopardo, cautelosas ainda em seus passos humanos aos ombros do mfumo, observavam com desconfiança a palidez epidérmica dos forasteiros. Seus estranhos cabelos lisos por baixo de capacetes ainda mais raros, pés revestidos de peles peladas e, no peito, uma carapaça de cágado protegendo-os. Como resistir a tal fascínio?
E as artes mágicas continuaram, agora já vestidas nos corpos dos nobres, enfeitando cabeças da realiza, vomitando sons musicais agreste nas bocas das gentes, adornando esbeltos pescoços femininos, e colares e pinturas sobressaindo nos peitos másculos dos guerreiros. Sim, como resistir a tal encanto e felicidade, que essa gente poderia ser má?
Não!...
Havia pois que mandar vir os tambores e os dançarinos, agradecer o recebido tão realmente e dar as boas vindas aos novos amigos, até porque todos sabiam que um estranho com fome não fala livremente. Havia muito a indagar, a saber e a aprender.
Dias poucos mais tarde, partia para a grande Mbanza capital do reino, uma longa marcha de gente, acompanhando os pálidos emissários, que haveriam igualmente de fascinar o poderoso rei e, o monstro forâneo, engoliria irremediavelmente o primeiro troço da sua conquistada vitima, entre batucadas festivas e honras dignas de boa fé e confiança.
Todo este espectáculo esvaziou-me por inteiro e as minhas pálpebras pesaram como um robusto cacho de bananas. Minha cabeça pendeu para o lado e adormeci até despertar, não sei quanto tempo depois, aos gritos de uma multidão delirante que saudava os barcos a descer o grande rio, Mzadi, sem saber que haveria de ser esmagada até à hora em que resolutamente sacudisse esse peso ignóbil das suas vidas e consciências.
O vendaval viria e a chuva transformadora apareceria para fazer brotar a flor, liberta e anunciadora de novos tempos. Entretanto, diante meus olhos infantis, desfilariam os horrores de cinco séculos de guerras, intrigas, morticínios, profanações, humilhações, comércio de carne humana, todo este cortejo banhado por uma torrente vasta de sangue, muito mais ampla do que o rio em que haviam aportado as caravelas nesse fatídico dia. Rio cuja origem pensavam os invasores nascer num instrumento romano de tortura erguido na Palestina, cruz moradia fétida de um homem enfezado morto pelos seus e pelos romanos, porque ousara libertar suas gentes não só da opressão dos fariseus, como da dominação romana, com palavras de amor e gestos de igualdade. Contra sua livre vontade, viu-se metamorfoseado por aqueles que o seguiram pelos séculos afora, no maior criminoso divino. Inocente, feito morrer para salvar o impossível, a condição humana, assiste do seu lugar no etéreo a uma imensa vaga de crimes cometidos e justificados em seu nome.
Foi pois aos pés desse símbolo, desses dois pedaços de madeira cruzados, que os minkixi (feitiços) dos brancos deglutiram crianças como eu, estraçalharam-nas e enfiaram-nas em barcos que as vomitaram em mundos novos e longínquos. Separados de seus pais e terras por um longo mar de escravidão. Não entendi o gesto dos novos feiticeiros albinos, subtraindo o poder de dominar e escravizar àquele pau em cruz no qual haviam imolado um semelhante e que apregoavam ser a cruz da bondade e da justiça.
Vi assim, desfilar a História no avanço dos tempos, no renascimento do mítico Fénix, no descarregar do peso escravo na tomada de consciência. Desde o início, tal como o vento a soprar benigno por entre os troncos da mafumeira, cada sopro uma melodia, uma canção fina sussurrada, passaram por mim nomes que jamais se vergaram
NZINGA A NKUVU...
Onde vira eu já este rosto, imponente e desdenhante? O mfumu (rei, chefe) que recebera os forasteiros, na mão desdenhante, a cruz do novo pagão imposto. Na mão direita segura a cruz do pagão ora imposto. Meio cobrindo os tecidos de ditombe, a pele do leopardo imponente. Nos punhos grossos e fortes, braceletes aguerridas. Aos ombros largos e levantados, a capa de mabela que se agitava ao vento. Em gesto de desdém, o mfumu ergue a crus forasteira e destrói-a com violência no chão. O nganga albino que ali fora deixado pelas caravelas já idas, acabava então o seu curto reinado.
Ao passar do tempo, o nganga furioso salta ágil como o macaco, revoltado com a tolerância dos chefes passados por não terem logo percebido o mal. Volteia no ar longos arcos de fogo, parábolas infernais, formas mirabolantes de esconjuração. Ofegante, cai no chão de bruços, para na dança silenciosa do gesto mágico, cobrir de pó o rosto, invocando os minkixi que poderão destruir o mal que pressentia vir pelos séculos fora. Da sua boca escancarada brota espuma barrenta, e a água da chuva cai-lhe em cataratas sobre a pele negra e luzidia, tonificando-o
Através dele, os mortos ordenavam ao povo que se levantasse e que não permitisse o dizimar de suas gentes. Segundo o nganga, não andavam nos ares os nkita (espíritos) heróicos queixando-se do abandono, do desleixo e das guerras entre irmãos que permitiam ao branco levar os vencidos para terras estranhas? Teria, perguntava ele, todo o povo que se tornar mvumbi (espírito) no mfinda (cemitério)? Perdera o mwanda, a sua alma, a sua essência?
Não!
O nganga não aceitava que assim viesse a ser, seus minkixi dariam nova força ao povo, este levantar-se-ia sob o comando de outros chefes.
NGOLA KILUANJI...
Vi então o bravo capitão branco, um a quem as gentes chamavam de Novaji (Paulo Dias de Novais) prisioneiro do poderoso rei da Matamba. A cobra já parira seus ovos, o veneno não era novo e inexperimentado, as miçangas e os apitos já não mais encantavam o incauto. Seis anos restou cativo, para conhecer o poder do reino africano e partir para os seus com o recado de não mais voltarem. Todavia, não bastou...
MBULA MATADI...
A fogueira devoradora do capim seco, feito mar e feito fogo. Ei-lo feito terra a amar quando seu corpo, trespassado, partiu para o mfinda, o cemitério, onde os antanhos o aguardavam vitorioso. O sangue ainDa morno manchava a pele de nzuge que meio escondia a pulseira de metal, ulunga (símbolo do poder), torcida em braço forte e inchado. E no fundo do rio, depois da viagem, uenda ku maza (ida para a água), houve festa.
NZINHA MBANDI...
a águia cuja sombra pairou pavorosa sobre as cabeças do invasor. A árvore centenária na qual as cigarras cantavam lendas de heróis guerrilheiros. Ela, que foi a esperança que brotou das rochas de Mpungo a Ndongo, fluindo cristalina para o Kwanza, transbordado em fúria avassaladora num vasto lago único de resistência. Ela, aquela mulher trovejante e soberba, guerreira dos guerreiros, irmã de Ngola Mbandi, que se encontrara com o poder forâneo, soberana livre, para tratar e ser tratada de igual para igual. Senti-me orgulhoso dessa mulher trovejante e soberba que vergava os canaviais inimigos guerreira das guerreiras, irmã de Ngola Mbandi. Ela que soube mostrar ao governador branco que em sua terra ninguém se lhe sobreporia, que não lhe exigiriam tributo humilhante, que ali fora como soberana livre, enviada do grande Ngola Mbandi, para tratar e ser tratada de igual para igual. Ela, que fustigara as hordas inimigas pior que a febre do mosquito amarelo.
EKUIKUI…
A florescente semente do milho perene nas lavras da liberdade, escondendo no seu seio as lanças atentas. A vida gerada nas caravanas marfineiras, no zumbido labor das abelhas em bolas de mel. Não como as vozes dos fracos que anunciavam em lamentos – bem o tínhamos dito, fujamos, somos a geração de compra e venda. Mãe que me trouxeste ao mundo, vem cá ver, estou partido como o nyombe (pequena árvore) reclinado sobre o joelho.
Não!... O nyombe nunca partido, reclinado sim, porque da dura labuta que extrai harmoniosos prantos de alegria à terra mãe, ditosa natureza geradora que nos enche os ventres, emprenha os músculos que seguram as armas e rega o cérebro de sangue fresco e cálido.
Foi também isso que ouvi de MUTU YA KEVELA…
Não somos gerações de compra e venda e tu, África que nos trouxeste ao Mundo, vem ver, estamos fortes como o pau de takula, erectos como mais alto e colossal dos embondeiros (beobab) e firmes como o singelo yombe.
MANDUME…
Não, nunca! Foi o grito do cavaleiro fulminante do sul, a pele do boi negro, as areias do deserto erguidas na poesia das fugas incontritas, o rastro da pólvora sempre acesa que de um lado quer do outro do rio Kunene. Unicamente pelas suas próprias mãos, conseguiu a morte chifruda envolvê-lo no cabedal negro e levá-lo para repousar nas terras férteis do curral. Não coube ao invasor essa glória! Mas do ovo nasce o avestruz que percorre livre os arbustos espinhosos das areias e o leite das vacas amamentará a nova alma.
Exausto, ainda conseguiu ouvir o ribombar da nova e moderna herança. No seu derradeiro esforço, a História descartava o fardo antigo e secular. À beira do Kwanza, a nova luz introduz-se nos corações dos homens e invade as matas, as longínquas chanas, e quebra as algemas finais. A ndua (ave rara e arisca de plumagem muito linda) canta o choro do parto:

“Criar
criar com os olhos secos
criar, criar
sobre a profanação da floresta
sobre a fortaleza impudica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar, criar com os olhos secos
criar, criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos
criar, criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos
criar, criar
criar liberdade nas estrelas escrava
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forças similadas
criar
criar amor com os olhos secos”

Nota: Poema de Agostinho Neto

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO



ANTÓNIO JACINTO

Nativo de Luanda, onde nasceu a 28 de Setembro de 1924, é sobretudo conhecido pela sua poesia. Com um livro “Poemas (Lisboa 1961) e vasta obra difundida em vários países, me antologias, revistas, jornais, etc. Nacionalista de primeira hora, condenado pela repressão colonial a 14 anos de prisão, tendo cumprindo 10 deles no campo de concentração do Tarrafal, em cabo Verde. Como escreveu Manuel Ferreira, não haverá movimento ou surto literário, iniciativa de carácter político de vulto em Angola, desde que lá de longe a ideia de libertação começou por germinar, onde este homem não tivesse intervido. Escritor com pouca prosa, o conto aqui inserido é um das suas esparsas tentativas neste ramo da literatura. Publicado, originalmente em “Contistas Angolanos” (1960) pela Casa dos Estudantes do Império, foi escrito em 1946.

VOVÔ BARTOLOMEU

Vovô Bartolomeu desde manhãzinha que olhava o pardacento céu, enrugando a já engelhada testa.
- Vovô, que é que você esta a ver no céu?
- Estou vendo uma coisa que você vai ver só, logo no meio-dia, e que a estas horas já chegou lá no sô Luca.
- Que é que tem lá no sô Luca?
- Diga nos homens para trabalhar com pressas, senão você vai ver só: ninguém que pára com chuva.
E vovô Bartolomeu entrou arrastadamente na cubata, de onde saía um fumo bom de fogueira quente. Ainda o ouvi cantar:

Mano Santo yá kifumbe
Eh! Eh! Eh! Eh!

- Eh! Pessoal! Vamos despachar o serviço, vovô Bartolomeu disse que vai vir chuva.
E todo o pessoal começou a trabalhar com força, para acabar de recolher o milho, quase para o meio-dia.
A colheita não tinha sido pá, e este ano havia de pagar todas as contas e ainda sobrava dinheiro para dar o alembamento (dote) da filha no velho Gonga.
Este ano sô Antonho tinha emprestado a espingarda a troco de carne e os kiombos (javalis) e as pacaças (espécie de búfalo) não estragaram o meu milho, não.
Ali estava o pessoal a meter na cubata o milho todo, por causa da chuva. Homens fortes de verdade! Aquele milho bonito que devia dar pra pagar as contas e o alembamento. Ainda devia chegar prò imposto e escapar de ir no contrato (trabalho forçado nas fazendas de café). Se o imposto subiu? Não sei, mas parece que este ano o imposto está mais caro! Depois tinha de comprar fiado um sobretudo na loja do sô Magalanji porque no cacimbo, eh!, o frio era o fim do mundo!
O pessoal cantava:

Trr… Trrr… Trrr…
Tuá… tuá…
Vai ou não vai?
Vaaiii…

E o Kassul, quando carregava a quinda (esta), respondia:

Rimbuim, pim, pim, pim…

Para puxar as forças.
No muxito (pedaço de mato cerrado), os pássaros da chuva, contentes, estavam a fazer:

Pílulas, pílulas, pílulas…

E na cubata vovô Bartolomeu contava na miudagem uma história que ele contava sempre todos os dias quando estava para vir chuva:
“Quando a tia Mariquinhas foi em Luanda como lavadeira, veio para a sanzala com a mania de pessoa fina e a dizer que já não sabia kimbundo (idioma nativo).
Uma vez começou de chover e a tia Anica disse:
- Eué! Nvula uiza! (Está a vir chuva)
- Ai, dona! Não fala assim, na língua de pessoa se diz assim: está chovar!”
Primeiramente ouvi as gargalhadas de vovô Bartolomeu e depois é que a miudagem começou a rir.
Começámos a ouvir barulho no céu. Nzâmbi (Deus) estava com raiva. E umas pingas de água cairam.
Vovô Bartolomeu chegou à porta da cubata e, a rir, mostrando as gengivas sem dentes, perguntou:
- Já está chovar?
O pessoal tirou a camisa e começou a trabalhar com força. Bom pessoal. Tudo família da casa e vizinho. Ali não tinha monangamba (criança).
As mulheres e a miudagem começaram a correr para enxotar os pintos e as galinhas. A criação parece que corria bem, mas os garotos – aía! – corriam melhor.
A minha cadela Quer-Vir entrou na cubata de vovô e começou a sacudir a água que tinha no corpo. Vovô refilou:
- Tunda (sai), Quer-Vir! Não faça chiqueiro aqui. Tundaco!
Quer –Vir estava contente e parece que queria arreliar o vovô. Veio dar voltas no terreiro, rebolou-se no chão e quando ficou toda molhada e toda cheia de terra, foi sacudir tudo em cima do vovô, que ficou raivoso:
- Estupor do cão! Tunda, ché, tunda! Que te racho!
Ficou escuro cedo. O pessoal estava satisfeito, mesmo nunca na minha vida ficara tão contente. Se vendia o milho ia amigar com a filha do velho Gonga. Eu não sei o que tinha na muxima (coração), mas há um ano que só pensava na filha do velho Gonga. Ela também dizia estar sempre a pensar em mim. Quando foi no óbito do velho Kalunga estive quase mesmo para levar ela no capim. É tão bom pensar estas coisas!
Nisto, do céu caíu um raio e caíu mesmo em cima da cubata que tinha o milho e tudo começou a queimar. Eu, o pessoal, as mulheres, a garotada e o vovô Bartolomeu viemos para fora, sem medo da chuva que chovia, para apagar o fogo. Qual nada! O milho queimou mesmo todo.
As mulheres começaram a gritar e a se lamentar e eu fiquei triste, muito triste…
Estava a olhar as cinzas e nos olhos veio água, muita água de chorar, que não era chuva, não.
Vovô Bartolomeu ficou muito grande, rijo, muito grande, pôs-me a mão no ombro e disse:
- Sorte de preto!
Olhei o meu arimbo (pedaço de terra). Meus pés descalços pisaram bem aquele chão, aquela terra que cheirava a chuva e era toda minha. No meu nariz entrou a força toda que vinha da terra grande. A chuva corria como rio lá ao fundo naquela baixa. E os paus de café estavam lavados, estavam verdes, estavam bonitos, bonitos e novos, como a filha do velho Gonga! Não, eu não ia ficar assim parado a pensar na sorte de preto que vovô falou. Não. Aquela terra tinha força. Eu também.
Amanhã eu ia mesmo, com a minha força toda, limpar a lavra do café.

In “Vôvô Bartolomeu”, Edições 70, 1979

SUMAÚMA - POESIA











TEMPOS SONHADOS

Aprendizes
pronto transformados
em feiticeiros
apagaram incólumes
os tempos do futuro

Restou
na obscuridade
o sonho
de vislumbrar
o eco da esperança
do amor
da lembrança
da dor
sempre ao sabor
de um vai sem vem
que é de todos
e não o é de ninguém

A PRECE DOS MAL AMADOS



CAPITULO NOVE

ESPELHOS DA ALMA

Os imortais só perdurarão
enquanto houver justiça.
(Kahlil Gibran)


Era meio-dia e meia duma tarde de calor escaldante, que penetrava incluso pelos abrigos mais profundos onde os lagartos e as cobras se abrigavam. Sob as árvores ou acobertados pelas nesgas de sombras projectadas pelas casas, os animais e as aves domésticas, língua de fora a arfar ar quente, moviam-se o menos possível, ensurdecidos pelo trinar estridente das cigarras nos troncos e ramos dos arbustos ao redor. Nas lavras, as mulheres abrigaram-se por uns instantes para alimentarem as crias e repousarem da dura labuta. Os montículos de galhos e troncos secos recolhidos, pontilhavam aqui e ali, prontos para serem levados para a aldeia, onde Nazamba, Nataniel e Tomás conversavam, resguardados da temperatura na frescura interior da casa. Sobre a mesa, dois copos com cerveja de milho e um outro contendo água, ao lado da jarra. Nazamba petiscava uma meia massaroca, o marido e o irmão não as tocaram, aguardavam a hora do almoço, que não tardaria.
- Vai sendo tempo de partirmos. – disse Nataniel. – Mais umas duas semanas e devo estar de regresso ao Hospital.
- Mas só quando a nossa mãe chegar. –retorquiu prontamente Nazamba.
- Talvez daqui a uns seis, sete dias. – informou Tomás
- Quem levou a mensagem, tem capacidade de preparar mentalmente a mãe? – perguntou Nazamba.
- Não somos assim tão rudes, minha irmã. Levou as devidas instruções e como aprontar a velha.
- Fico mais tranquila, assim dentro de duas semanas poderemos ir.
- Eu parto amanhã, não posso ficar mais tempo. – disse Tomás.
- E a nossa mãe? – perguntou, angustiada.
- Não te preocupes, se não for eu próprio a trazê-la, será alguém de minha plena confiança. Levem-na para Luanda, não se sabe o que será o amanhã.
- E o que vais fazer, Tomás? – pergunto Nataniel.
- Para te ser franco, não faço a mínima ideia. Como só sei manusear armas, talvez fique no exército, acho que só haverá um.
- Poderás estudar, fazer um curso que gostes. – insinuou Nazamba.
- Nunca é tarde, de facto. Logo verei, por agora é prematuro, nunca se sabe o que tudo isto vai dar. Acho que quando chegarem as eleições, temos tudo nas mãos para as ganhar.
- Como assim? – quis saber Nataniel.
- Estamos em posição de força, obrigámos os cubanos a sair e o regime a abrir, o comunismo caiu e não temos o desgaste de imagem que vocês têm.
- Queres dizer que vai ser assim tão simples, só vão ter que gerir a situação? – perguntou Nazamba.
- Quanto a mim, sim. Nós somos os libertadores e temos o apoio dos camponeses.
- Mas a maioria dos votos estão em Luanda, onde uma grande parte da população se refugiou. – retorquiu Nataniel.
- Mesmo assim. Vocês já estão no poder há muito tempo e a vida das populações em Luanda não está boa, segundo sei. Mesmo Luanda irá votar em nós, não precisamos de fazer campanha sequer, vocês é que têm que se explicar junto ao eleitorado, não nós.
- Achas que sim, não estás optimista de mais? Olha que a vossa imagem não é também assim tão boa, os crimes são muitos. – disse Nataniel.
- Crimes, que crimes? A guerra é que é um grande crime, tanto de um lado quanto do outro.
- Lá isso é verdade, se as mulheres mandassem não haveria guerra. – interpôs Nazamba.
- E quando chegares a Luanda, tens que ter muito cuidado para não falares deste nosso encontro. – recomendou Tomás.
- Mas porquê? Estão a assustar-me!
- Pactuar com o inimigo, eis o porquê, minha irmã. Confraternizar com o inimigo, tanto para mim quanto para o teu marido, não é seguro por agora. Podem mandar-nos fuzilar.
- Fuzilar? – perguntou Nazamba, verdadeiramente em pânico.
- Para o caso do teu irmão, certamente. Quanto a mim seria no máximo a travessia do deserto ou a volta para as frentes.
- Então os teus homens... – pensou alto Nazamba, olhando para o irmão.
- Nada a temer, não sabem que Nataniel é militar, conhecem que é teu marido e nada mais. Esta é uma das razões porque desejo partir o mais cedo possível, ainda pode aparecer por aí alguém que não deva. Amanhã de madrugada estou de abalada, despedimo-nos hoje à noite, nem vou falar ao avô, vocês explicam tudo.
- E se fossemos almoçar? Estou esfomeada. – sugeriu Nazamba, para mudar de assunto.- Acho uma óptima ideia. – respondeu Tomás enquanto enchia os copos novamente.
Nazamba dirigiu-se à porta e gritou para os moleques, pedindo-lhes que trouxessem a comida e mais bebida. De seguida regressou à mesa e sentou-se.
- Tomás...
- Sim, minha irmã, o quê é?
- E se a guerra recomeçar?
- O que queres dizer com isso?
- Não venhas mais a esta aldeia, deixa o nosso avô em tranquilidade.
- A paz com a família está feita. Fiquem descansados, levem a mãe para Luanda, aconteça o que acontecer.
- Assim faremos, tão cedo ela chegue logo partiremos.
- Estamos todos cansados da guerra... havemos de nos encontrar em breve... só que por enquanto tenho que ser cauteloso... – foi gaguejando, Tomás.
- É verdade, toda a vossa juventude foi entregue à morte, não há o direito. – disse Nazamba, sentindo a angústia do irmão.
- Não vamos recair nessa conversa, temos que ser optimistas. – respondeu Nataniel.
- Eu sou optimista, mas quem nos dirige, tanto a uns quanto aos outros, são pessoas egoístas e que só vêm os seus interesses. Uns ficam ricos com o petróleo, os outros com os diamantes. E tu Tomás, meu irmão, matarias o meu marido, assim como ele te mataria a ti se a ocasião se proporcionasse. Não é verdade?
- Para quê esta conversa agora, minha irmã?
- Mas é verdade ou não o que eu disse? – insistiu Nazamba.
Os cunhados entreolharam-se, mas nada disseram. Sabiam que assim era, caso o capricho da vida propiciasse os condimentos certos, esse teria que ser o destino, o cenário estabelecido pelas regras do jogo.
- Nazamba, este é o momento da nossa despedida, a partir de logo à noite não mais veremos o Tomás. Entendo a tua angústia, mas isso nada modificará, portanto vamos passar o resto do dia em harmonia. – pediu Nataniel.
- Vocês homens fingem que são muito fortes...
- Não é bem assim, minha irmã... vamos comer em paz, logo nos veremos novamente, a guerra acabou, vais ver.
Sob esta nota de despedida adiantada, o almoço decorreu melancólico e meio silencioso, cada um remetido ao seu âmago. O que iria acontecer ao país, tantas vezes acordos haviam sido assinados e mãos cerradas, seguido de efusivos abraços de promessas de irmandade e de respeito mútuo, para logo ao voltar da primeira esquina do desentendimento, propositado ou não, ruírem as expectativas, as esperanças e o fratricídio recomeçar em acrescida carnificina e destruição?
Eram quatro e meia da manhã quando Tomás reuniu os homens e partiram, silenciosos, embrenhando-se nos matos que tão bem conheciam, em passos cautelosos de futuro incerto. No seu coração, levava um peso muito maior do que trouxera.
A povoação despertou com os gritos das crianças a anunciar que os soldados tinham ido embora, não mais se via o fumo dos fogos matinais onde permaneceram.
- Que soldados? Que soldados estiveram aqui? Quem falar isso, vai amarrado no soba grande! – mandou Nehone instruir por toda a aldeia.
E cada qual calou a sua curiosidade, se o soba grande tal ordenara era porque sabia o que se passava, e o povo pensou que a guerra não acabara afinal. Tudo iria recomeçar, se não, porque tal mando, quando quem os visitara até era o seu neto Tomás? Que teriam discutido, que ele não lhes contara? Teria sido por isso que partira sem sequer despedir-se, como chegara, sem anunciar-se? A comoção foi tanta que Juba de Leão reuniu com os velhos, o conselho, pela manhã e pela tarde mandou o povo agrupar-se junto ao jango, tendo-lhes explicado que havia paz, porém não se tinha a certeza do que ia acontecer, ainda faltavam as eleições e, assim, ninguém queria arriscar, porque não se mexe no lodo quando se deseja apanhar o bagre. Daí a sua ordem e daí, também, a saída furtiva do neto com os seus, a tropa do governo poderia aparecer e logo haver confusão, sobrando para a aldeia porque ele não mandara avisar. Por isso, deviam calar até a situação estar mais clara. Ninguém estivera na aldeia, nem neto nem meio neto, ninguém, e quem não cumprisse com a ordem teria que se ver com ele e a sua ira. Depois de algumas perguntas, a população dispersou e todos se sentiram mais aliviados, fingir sobre a presença da tropa deste ou daquele, há muito que o faziam.
Ao cair da tarde, Nehone dirigiu-se à casa dos netos tendo enviado um dos moleques a anunciar a sua visita. Nataniel esperava-o na porta e saiu a seu encontro, sorrindo. No interior, Nazamba acendeu o petromax, em breve escureceria por completo, abriu o mosquiteiro sobre o leito, e cerrou as pequenas e toscas janelas de madeira laterais, a luz atraía muitos insectos.
- Boa noite, avô, seja bem-vindo – disse, afastando-se para que o velho entrasse primeiro.
- Obrigado, meu neto e boa noite para vocês. – respondeu, enquanto Nazamba a ele se dirigia para o saudar.
- Como vão as coisas, aqui?
Como vão as coisas por aqui? Que coisas?...
Logo deu conta que Nehone vinha para colher informações, pelo menos o início da conversa assim indicava. Trouxe-lhe uma cadeira para se sentar, junto à mesa, e acomodou-se na outra, de igual modo.
- Vão bem, só que a ida de Tomás causou muita preocupação. – respondeu.
- É verdade, pelo menos devia ter falado connosco primeiro, ele não vos avisou?
- Não, avô, não disse nada – respondeu rapidamente Nataniel, mentindo.
- Ficámos tão surpresos quanto todos. – confirmou Nazamba, em socorro do marido.
- Estranho, sair deste modo, porquê? – insistiu o velho, desconfiado.
- Talvez pelos motivos explicados pelo avô Juba de Leão...
- Não sei... não sei. Nãos vos falou mesmo nada?
- O que é que ele ia falar? Se partiu desta maneira é porque a achou melhor, menos confusão na aldeia, vai ver que foi isso. – respondeu Nataniel.
- O avô acha que há outro motivo? – perguntou Nazamba, para afastar as suspeitas.
- Não! – respondeu, lesto, Nehone. – Não, está tudo bem. Então nem se oferece um copo de água a um velho?
- Estávamos à espera que o avô acabasse a conversa para lhe perguntar o que quer beber. – disse Nazamba.
- Água, minha neta. Só um copo de água do moringue, que deve estar bem fresca.
- E está. Não quer comer nada?
- Vocês da cidade estão sempre a comer, não obrigado, mas se tiver um bocado de milho assado, aceito.
Nazamba dirigiu-se à porta e ordenou, a um dos moleques, que trouxessem milho assado e rápido.
- Amanhã vou vir com o mestre Tuluka para falarmos.
O casal assustou-se, afinal a conversa era aquela que eles pensavam esquecida, as linhagens e sabe-se lá mais o quê.
- Falar sobre quê, avô?- fingiu, Nataniel, talvez houvesse qualquer outra questão.
- Amanhã digo. Vocês devem ir embora daqui em breve e tem que estar tudo resolvido.
- Credo, está a assustar-me! Tudo resolvido, que problemas há? A nossa mãe?! – indagou Nazamba.
Como resposta Nehone sorriu e sorveu a água. O moleque entrou com as massarocas assadas e entregou-as a Nazamba, com as duas mãos. Saiu de imediato, deixando a porta semiaberta.
- Não te preocupes, dá-me o milho. Sobre a tua mãe, o Tomás não disse que ela iria voltar?
- Disse, e pediu que a levássemos connosco para Luanda. – respondeu Nataniel.
- Então pronto, vamos aguardar que ela chegue!
- Mas avô, que assunto é esse para amanhã que tem que meter o mestre Tuluka? – quis saber Nazamba, preocupada.
- Minha neta, você vai ter que aprender a esperar. A ter paciência e saber esperar, o rio não corre toda a água de uma só vez. O que de amanhã é, de amanhã e não de hoje. O sol não nasce todos os dias?
- Desculpe, é que não estou habituada a esta maneira de pensar e ver as coisas.
- Pois vai habituando e vai habituando rápido.
Meus Deus, ir-me habituando? A quê?...
- Porquê, avô? – indagou Nazamba, novamente assustada.
- Porque para apanhar o mel, tem que saber fazer fumo e conhecer as abelhas.
- Apanhar o mel, eu? – disse Nazamba, olhando para o marido a solicitar ajuda.
- Nazamba, os velhos sempre falam com muitas metáforas e tens que tentar entender o que o avô está a dizer-te. – respondeu Nataniel.
- Mas nem tu próprio deves estar a entender!...
Nataniel olhou para o chão e levantou-se para que a esposa não visse o seu embaraço. Claro que entendera. Nehone sorriu e achou melhor deixar a conversa por ali. Ergueu-se, pronto para sair.
- Mas o avô acabou de entrar! – logo protestou Nataniel, desejoso de saber um pouco mais, talvez o velho escorregasse.
- De facto, mas tenho que ir. Obrigado pela água e até amanhã, logo quando o galo madrugar.
- Assim tão cedo? – indagou Nehone, surpreso.
- É!... O pássaro que levanta cedo, é o que apanha a minhoca.
E para que não houvesse mais interposições, Nehone saiu, deixando Nataniel apreensivo, não viera para se meter ou ver metido nos assuntos da aldeia. Há tempos que estava afastado e mais do que metade da sua infância já a havia esquecido, perdera muitos dos costumes e das tradições, modificara ideias e maneiras de interpretar acontecimentos, não dera continuidade à vida rural, e essa ambivalência não lhe era confortável. Que lhe queriam os velhos? Fosse o que fosse, não abandonaria Luanda nem o Hospital, sobre estes factos assentaria a sua defesa.
Pode o pássaro levantar cedo à vontade, que não serei eu a apanhar a minhoca!
Metade da noite foi passada com Nataniel e Nazamba a tentarem descortinar o que desejavam de si com tanta premência e, quando lhes bateram à porta, mesmo antes do cantar do galo a fim de que não fossem vistos, pouco tinham dormido. Nataniel abriu a porta e franqueou-lhes a entrada, rosto desfigurado pelo cansaço. Depois dirigiu-se à cómoda e acendeu um candeeiro a petróleo.
- Bom dia avô, bom dia mestre, sentem por favor, tenho que acordar a Nazamba e lavarmos a cara.
- Façam isso e não demorem muito.
O mestre adivinho estendeu o luando no chão da sala e foi preparando os seus adereços. Do quarto de dormir, pela nesga da porta propositadamente entreaberta, o casal olhava, perplexo e receoso, nunca se tinham visto confrontados com cena parecida e temiam o que eles julgavam ser os feitiços e os feiticeiros. Agora, num turbilhão, viam-se envoltos em actos que não percebiam e as suas vidas a serem manobradas para rumos que não vislumbravam nem aceitavam.
- Mas o que eles querem, meu Deus? – ciciou Nazamba ao ouvido do marido.- Não sei. O melhor é despacharmo-nos para acabar com esta comédia o mais cedo possível.- Mas estou com medo.
- Não há-de ser nada, afinal somos netos, portanto não nos querem mal.
- Então para quê todas essas coisas. Isso não é só conversa, olha para aquele cesto que ele colocou na esteira, todo cheio de coisas estranhas.
- Aquilo é o cesto de adivinhação, vão querer mostrar-nos qualquer coisa, vais ver – murmurou Nataniel.
- Adivinhação, o que há aqui para adivinhar, não pedimos nada?! – respondeu Nazamba, tremendo, ao recordar-se do Cigano e da leitura da mão que lhe fizera vezes sem fim, sempre lendo-lhe a sorte que ele construía para seu benefício.
- Tem calma, vamo-nos preparar para que tudo acabe cedo. Logo ficaremos a saber o que pretendem.
Encerraram a porta com prudência e Nazamba acendeu o candeeiro a petróleo. Ambos lavaram-se a foram-se vestindo em silencio de vozes, as suas mentes estilhaçavam em pensamentos e conjecturas, até as suas sombras projectadas em danças graciosas nas paredes do exíguo quarto, lhes infundiam receio. Por fim saíram, Nazamba cumprimentou com um bom dia os dois, e sentaram-se, calados. Entretanto, Tuluka, sentado no luando, olhos fechados, cantarolava palavras ininteligíveis e bamboleava o corpo para a frente e para trás. Por fim abriu os olhos e indicou, com um gesto, a Nazamba para que sentasse no chão, um pouco à sua frente. O que ela fez, com relutância, e após ter sido empurrada com suavidade por Nehone, mais ajoelhada do que sentada. Procurou os olhos do marido, que propositadamente os baixara a fim de que os não buscasse, como fuga ou desconcentração.
- Não precisa ter medo. – disse Tuluka.
- Mas o que vai fazer, sou estranha a estas coisas! – respondeu, voz embargada.
- Vamos fazer uma cerimónia para vos revelar o que os antepassados falaram.
- Cerimónia, antepassados?... – inquiriu Nazamba, apreensiva.
- Mano Nehone, explica! – pediu mestre Tuluka.
Nehone endireitou o corpo e pigarreou. Bebeu da água e esfregou as mãos, como que limpando qualquer sujidade. Levantou-se, de modo a que pudesse ser visto pela sobrinha neta, e falou.
- A minha neta deve estar lembrada quando lhe expliquei a sua descendência, assim como a do teu marido, o nosso Nataniel, não estás?
Falha de palavras, emperradas na garganta por um medo estranho, meneou a cabeça em assentimento.
- Pois bem, tinha uma razão. Chegou a altura de se encontrar um substituto para Juba de Leão o nosso soba grande, para que não haja lutas e mortes quando ele falecer, o mestre Tuluka foi consultado. O que os antepassados falaram, nós queremos mostrar-te.
- O que os antepassados falaram? – perguntou Nataniel.
- Sim, porque o soba Juba de Leão quer-te a ti, Nataniel, como seu sucessor, por isso há muito que esperava a tua vinda. – respondeu Nehone
- A mim? Fora de questão, não tenho nem quero ter nada a ver com isso.
- Não é preciso, quem falou já falou. Pela linha do sangue os sucessores só poderiam ser Nazamba ou Tomás, mas Nazamba é a mais velha e a escolhida. – disse Tuluka.
Nazamba, sem um ruído, amoleceu o corpo e tombou para o lado, desmaiada. Nataniel deu um pulo da cadeira, sendo de imediato travado por Nehone.
- Deixa, ela está bem, senta-te. – ordenou-lhe com autoridade.
Tuluka recomeçou as cantilenas e ergueu-se, para dançar, em suave saracoteado, à volta de Nazamba, enquanto a borrifava com uma pequena vassoura de varas, de uma mistela que tinha numa tigela feita de uma cabaça.
Atónito, Nataniel contemplava a cerimónia, sem dar por ela, agarrado ao braço de Nehone, que o conduziu à cadeira e o tranquilizou com o olhar.
Mestre Tuluka sentou-se novamente, pernas cruzadas, agarrou no balaio de adivinhação que levantou por três vezes acima da cabeça, em cantos roucos, lançando, depois, o conteúdo no luando, à frente do corpo desmaiado de Nazamba. Olhou para Nehone e ambos sorriram de satisfação, o boneco elefante fêmea de madeira, jazia sobre o dente do leão. Recolheu os amuletos, levantou-se e executou a mesma dança à volta de Nazamba, borrifando-a novamente, em gestos que acompanhavam a cadência do passo. Sentou-se, agarrou no cesto, peneirou os amuletos três vezes e tornou a lançá-los no luando e, como antes, o elefante mulher sobrepôs-se ao dente de leão, facto que Nataniel notou, recuando a cadeira, de temor.
Estes velhos estão malucos, hipnotizaram-me!...
Tuluka, mais uma vez se ergueu, agarrou na tigela e na pequena vassoura que rodopiou por três vezes em cima do líquido, e procedeu à aspersão de Nazamba, com as mesmas palavras e sons só por ele entendidos. Pouco depois Nazamba começou a dar sinais de vida e foi-se levantando com suavidade, meneando a cabeça e batendo os pés no chão ao compasso das cantilenas do mestre adivinho. Nehone sorria com alegria indisfarçável, enquanto Nataniel, sem se aperceber, empurrara a cadeira cada vez mais para trás, até a encostar à cómoda, travando-a. Era a primeira vez que assistia a uma sessão de possessão. Os gestos de Nazamba foram aumentando de energia, e começou a rodopiar a cabeça. Tuluka aspergiu-a mais uma vez e, sempre saracoteando, foi sentar-se, deixando a mulher a gesticular e a rebolar o corpo quase em frenesi, os olhos esbugalhados, parecendo querer saltar-lhe das órbitas. Levantou o balaio e, com os mesmos rituais, lançou os amuletos uma terceira vez. Quando o elefante fêmea apareceu sobre o dente de leão, ouviu-se um grito-rugido rouco, nitidamente masculino, da boca de Nazamba, já caída por terra em sacudidelas e tremores violentos, proferindo palavras que nenhum dos presentes entendia. Tuluka, embora sentado, continuava com a aspersão e marcava no chão o compasso de um ritmo côncavo, com o pé direito.
- Falem! – Obtemperou por fim Nazamba, na voz de um homem e na língua nativa.
Nataniel, ao ouvir a mulher a falar um idioma que ela desconhecia e numa voz masculina, caiu para o lado, estonteado. Nehone olhou para trás, viu o neto no chão, sorriu e ignorou-o. Logo voltaria a si, não se magoara e já percebera o suficiente para ser de utilidade è esposa.
- Juba de Leão deseja indicar um sucessor que não é da linhagem. – falou Tuluka.
- Esse gesto trará muitos males sobre vossas cabeças e descendência...
- Sabemos, por isso precisávamos ter a certeza de quem deve seguir.
- É aquela que vocês sabem quem é, já falámos. – respondeu a voz, arreganhando a boca de Nazamba, num esgar de refutação.
- Mas ela é filha do branco... – Insistiu o mestre adivinho.
- Ela é filha, nossa descendente. – Replicou a emanação, com gestos autoritários.
- Isso vai trazer muita confusão, muitos não vão aceitar.
- Fale quem falar. – reafirmou - Vocês sabem que desde Zwela, filho de Luvemba o fundador desta linhagem, que puxou Luvumbu mais Mabunda que deram Juba de Leão mais Kolele, tem Balanta e Nazamba. Olhem pela descendência...
- Vamos cumprir.
- É melhor cumprirem, grandes desgraças vão acontecer se o não fizerem. Todos os filhos que nascerem da descendência, serão comidos. Agora vou-me embora.
Tuluka levantou-se prontamente e dirigiu-se a Nazamba, começando a tapear-lhe suavemente a cabeça, enquanto lhe endereçava palavras só por ele conhecidas. Os gestos desta foram-se tornando mais suaves, até que acabaram por completo os efeitos da posse. Sentou-se, quieta, buscando com o olhar o sentido. Viu formas distorcidas e cores múltiplas em caleidoscópio rolante. Do galho da árvore onde pirilampos brilhavam nos olhos da onça, desenroscou-se a cobra que desceu sibilante para o capim húmido da casa do pai. Então, notou o marido, anichado no chão, e estranhou, quando a seu lado havia a cadeira em que antes se sentara. Nehone ergue-a e conduziu-a, com cuidados, para a cadeira onde a deixou para repousar. Momentos longos após, voltou-se para o marido.
- O que aconteceu?
- Entraste em transe e uma voz falou através de ti. – respondeu-lhe este.
- Uma voz falou através de mim?
- Sim. – respondeu Tuluka. – Os antepassados escolheram-te para sucederes ao teu avô.
Nazamba permaneceu silenciosa pelo tempo que o pensamento voou pelas montanhas e mares até ao túmulo do pai. Viu-o rebolar-se em gargalhadas estrídulas, sentado na tipóia que o conduzira a Juba de Leão para o pedido de casamento com Balanta. Em reverberação sinuosa, deu por si na continuação da gargalhada paterna. Levantou-se e passeou à volta do pequeno espaço, quase tropeçando no balaio de adivinhação, pousando os olhos nos três homens presentes, sempre a gargalhar. Assustaram-se, seria que tinha enlouquecido?
- Os antepassados falaram? – riu. – Os antepassados falaram?
- Sim, falaram e confirmaram aquilo que já sabíamos. – reafirmou Nehone.
- Tudo aquilo que já sabiam? Desde quando é que sabiam tudo isso? – perguntou, sarcástica, e séria.
- Já há algum tempo, precisávamos era de confirmar junto de ti, na tua presença. Foi o que aconteceu.
- E o que aconteceu? – perguntou directamente ao marido?
- Só sei o que aconteceu, até ao ponto em que desmaiei. – respondeu, envergonhado.
- Desmaiaste? – perguntou Nazamba, com nova gargalhada. – E porque desmaiaste?
Nataniel não conseguiu olhar para a mulher, ainda não interiorizara o que acontecera e porque não se aguentara. Teria o seu subconsciente escolhido aquela evasão a fim de que não testemunhasse a possessão da esposa e pudesse, mais tarde ser questionado?
- Olha Nazamba, fui simples testemunha de parte do que aconteceu. A uma determinada altura entraste em transe e começaste a falar com uma voz de homem. Foi aí que perdi os sentidos . – desculpou-se.
Nazamba sentiu que feridas antigas estavam a ser laceradas e postas a sangrar. Seria que teria que atravessar o longo deserto dos sentimentos fossilizados, penetrar pelas cavernas mentais, em cujos tectos estalactites milenares de emoções revestidas de espessa crosta protectora, gotejam os desejos do ódio e da vingança, para, enfim, alcançar e percorrer a estrada da tranquilidade e da harmonia espiritual?
- Meu avô, só agora é que os antepassados resolveram falar? – Inquiriu, ríspida. - Porque não se revelaram quando correram com o meu pai e o meu irmão e deixaram a minha mãe quase louca? Porquê, seus velhos mentecaptos?!...
- Nazamba! – gritou-lhe o marido.
- Deixa, não faz mal, é o medo que está a falar nela. – cortou logo, Nehone.
- Medo? Medo de quê, destas mentiras e patifarias vossas?
- Não, minha neta. É o medo de aceitares o que está determinado pelos que nos deixaram. Finges não acreditar, mas sentes medo.
Nazamba calou-se e continuou a andar à volta da sala. Tuluka, por precaução, já retirara o cesto e recolhera o luando, que encostara à parede.
Querem é dar cabo de mim, isso sim!
- Medo? Pelo que eu sei os mortos não falam. Que estória é essa que me querem impingir?!... – Disse, já um pouco mais calma.
- Eu mesmo não acreditei quando vi o resultado da adivinhação. Todas as seis vezes, como agora, falaram de ti, não há coincidência, é a vontade dos antigos e não me perguntes porquê. – disse Tuluka.
Vontade dos antigos?... Patifes ... Vamos lá a ver o que querem.
- E então? O que significa tudo isso para mim? – perguntou.
- Significa que temos que te preparar para seres a rainha, a nossa soba grande. – concedeu Nehone.
Mais uma vez a gargalhada sonora de Nazamba reverberou pela sala. Marcelo, o pai,
cutucava-a, da varanda da casa comercial. Os outros brancos, os comerciantes, pareciam pálidas imagens reflectidas deles próprios, agrupados à volta de um troco seco e recurvado, corpos translúcidos que a miravam do fundo de olhos cavernosos. Nervosa, aumentou o passo e nem mais olhava para Nehone, Tuluka e o marido. Sua mente ameaçava explodir. Esperava tudo menos o que ouvira. Ela, filha escorraçada por ser parte dos que vieram pelo mar, agora era eleita rainha dessa mesma gente.
Estão doidos, só pode ser! E o meu marido, meu Deus, o que faz no meio de tudo isso? Rainha?...
- Rainha? Agora vou de filha da cobra a rainha? Vocês são patéticos, absurdos, será que não vêm o que dizem?- Assim pode parecer, mas não é. Sabemos o que dizemos e o que fazemos, minha neta.
- É verdade, Nazamba. Se fugires, muita desgraça cairá sobre a aldeia e mesmo sobre ti e tua descendência, teus filhos serão comidos. – afirmou Tuluka.
- Comidos? Mas que estória é essa?!... – Indagou, perplexa.
- Serão mortos, serão chamados, desaparecerão um a um, nada os salvará, os poderes são muito grandes, nem eu poderei fazer nada. – Contestou mestre Tuluka
- Parece não quereres acreditar no que se passou. O teu marido foi testemunha, lembras-te do que te aconteceu? – Insistiu Nehone.
Nazamba tentou recordar os acontecimentos, mas só chegava até ao momento em que mestre Tuluka anunciava que fora a escolhida para sucessora. Depois as trevas, nada mais. Não ingerira qualquer bebida ou comida, nem dejejuara e Nataniel afirmava que a tinha ouvido falar, em transe, com a voz de um homem.
- Parem, já não aguento mais. – gritou.
- Está bem, vamos sair, mas voltamos para saber como estás. Depois teremos que falar com o conselho e preparar tudo para, quando o tempo chegar, poderes assumir o teu destino. – disse Nehone, fazendo um sinal a Tuluka para recolher as suas coisas e partirem.
Amanhecera, mas mesmo assim a saída dos dois passou despercebida, a não ser para Juba de Leão que, involuntariamente, ao vislumbrá-los a atravessar o espaço entre a casa dos netos e a do outro lado, estranhou o facto de ver juntos o irmão e o curandeiro, logo pela manhã, com o ajudante caminhando atrás com o familiar saco de ráfia, que ele sabia conter o cesto de adivinhação. Não se preocupou, perguntar-lhes-ia em devido tempo.
Na casa do jovem casal, Nazamba ainda passeava de um lado para o outro, enquanto que Nataniel, cotovelos apoiados nas pernas, embrenhava a cabeça nas mãos em concha, evitando olhar para a esposa. Estava seguro de que suas vidas acabavam de ser transformadas, nunca mais seriam as mesmas. As portas desconhecidas que lhes foram abertas e reveladas, carregavam sinais que jamais esqueceriam. Preocupou-se com o filho na barriga de Nazamba, até que ponto fora afectado pelo transe da mãe, viria de igual modo a ter as capacidades de médium?
- Acreditas mesmo no que viste? – perguntou, por fim, Nazamba.
- Não sei o que responder. Eu vi, Nazamba, eu vi-te desmaiar quando o velho Tuluka te anunciou que serias a próxima rainha. Vi-o dançar à tua volta, sempre aspergindo-te com um líquido qualquer, e quando começaste a falar com a voz de um homem, desmaiei de medo, acho.
- Mas não ouviste essa voz anunciar o que esses velhos malucos afirmaram?- Não, estava inconsciente.
- E então? – insistiu Nazamba.
- E então o quê?
- O que fazemos? – insistiu, ela.
- Acho que devíamos partir o mais cedo possível, irmo-nos daqui tão rápido quando possamos.
Nazamba parou de andar e sentou-se ao lado do esposo. Acariciou-lhe a cabeça e sorriu, surpreendendo-o pela mudança abrupta de disposição. Endireitou o corpo e olhou para a mulher com um ar apalermado que a fez rir.
- Nataniel, acabo de ter ume premonição muito forte para que aceite o que me foi oferecido. – disse, sem espaço para dúvidas.
- Estás a sentir-te bem? – perguntou-lhe, perplexo.
- Nunca me senti tão bem na minha vida. Sinto-me vindicada e por isso desejo assumir o meu destino.
- Vindicada? Assumir o teu destino? Francamente, Nazamba, não te entendo.
Não será necessário, meu amor.
- Já não há mais nada a entender, tudo está claro.
- Explica-te, por amor de Deus, estás a deixar-me preocupado.
- Não tens razão para te preocupar, sendo o príncipe consorte. – disse ela, rindo abertamente.
Nataniel, julgando que a esposa estivesse a divertir-se à sua custa, relaxou e riu de igual modo. Ergueu-se e bebeu um copo de água, com um gesto perguntando se também desejava.
- Não, obrigado. Daqui a um pouco vamos matabichar - disse, galhofeira.
- Espero que a tua mãe chegue em breve, para podermos partir.
- Não iremos sem ter esta situação resolvida e quero que ela seja testemunha.
- Mas Nazamba, testemunha de quê?
- Do cargo que me foi proposto.
- Cargo? Mas não te foi proposto cargo nenhum, mas sim a nossa desgraça, se é que estás a falar a sério. – disse Nataniel, levantando-se bastante agitado.
- Nataniel, já te afirmei que nunca estive tão séria na minha vida.
- Mas tu, que não sabes nada desta vida...
- E daí, não posso ser iniciada como qualquer outro?
- Nazamba, já olhaste bem para ti?
- O que queres dizer?
- Olha para ti... estás em África e não na Europa.
- Também queres dizer que por eu ser mulata não tenho os mesmos direitos que qualquer outro angolano?
- Os mesmos direitos claro que os tens, mas...
- Mas?... Até tu, Nataniel, meu esposo, fazes uma afirmação dessas?
Tenho que a tirar daqui, nem que seja com estes argumentos...
- Não vês que isto é um país negro?
- Angola não é um país negro. É um país com uma maioria negra e com outras minorias com os mesmos direitos à cidadania, essa é a diferença. – Disse, zangada. - Verdadeiramente surpreendes-me...
- É a vida, não sou eu. Não estamos preparados para tal!
- Ai não? Mas os velhos parecem estar, e afirmam que foram os antepassados que assim decidiram! O que dizes?
- Uma coisa são estas lutas intestinas, em que se usa tudo para se chegar a um fim, outra...
- Mas não foste tu próprio que viste, e por três vezes, o resultado da adivinhação? Afinal desmaiaste por que razões, para me impressionar?
Nataniel não soube o que responder, efectivamente testemunhara e não vislumbrara qualquer possibilidade de batota, os amuletos tinham sido lançados sobre o luando e o elefante fêmea caíra sobre o dente de leão, pela simbologia evidente, até ele poderia chegar à conclusão de que algo não natural se passara.
- Nazamba, vamo-nos embora, depois mando cá alguém apanhar a tua mãe. E estás grávida, não esqueças.
- Não vou, Nataniel. Estou como o avô Nehone, quando disse quem falou sabe o que está a falar.
- Não imaginas sequer que pode ter sido uma trapaça e que eu me tenha auto-sugestionado?
- Mas não te auto-sugestionaste quando levaste os testículos do cabrito contigo para Cuba, não foi?
Possa, será que não desiste?
- Era criança...
- Mas guardaste o pacote e trouxeste-o de volta!...
- Só para agradar aos velhos... – tentou desculpar-se, sabendo que assim não era, pois
sempre crera que aquilo fora a sua protecção, a sua garantia de um retorno conseguido
- Também quero agradar...só que pelo percurso inver
- Ai meu Deus!... Nazamba, o que será a nossa vida se nos metemos nisto?
- Não finjas que perdeste toda a tua infância, que o que aprendeste e testemunhaste em criança, foi tudo por água abaixo pelo ralo da tua educação cubana?
- Claro que não, mas não quero voltar, regredir, sou outro homem e tenho o direito a isso. Não tenho que acreditar em feitiços, possessões e predestinações para ser africano.
- Certo, mas o que mudará se eu aceitar?
- Tudo, Nazamba. Tudo. As nossas vidas nunca mais serão as mesmas.
- Não mudará em nada. Continuaremos em Luanda e eu desloco-me aqui regularmente.
Mesmo extremamente agitado, Nataniel encontrou forças para rir. Achou que a mulher ou estava a levar a brincadeira longe de mais, ou sofrera alterações psicológicas que ele não entendia. Maldisse a hora em que o avô a mandara embora. Enfrentava uma situação que não podia controlar, sobretudo porque impotente desde que Nazamba mantivesse a disposição de entrar nas jogatinas de Nehone e de Tuluka que, como mestre adivinho, carregaria muito peso numa reunião do conselho quando o tempo chegasse. A não ser que tudo denunciasse a Juba de Leão, mas ao fazê-lo iria desencadear situações bem piores que poderiam eventualmente conduzir a mortes, por vinganças e feitiços. Teria que mostrar paciência e levar a esposa a abandonar o desejo revelado, desejo esse certamente de vingança insculpido no escuro do seu íntimo, alimentado por anos penosos de sofrimento recalcado e quase sempre amordaçado, que agora a aguilhoava com obstinação messiânica.
- Não me levas a sério, é? – perguntou Nazamba.
- Claro que levo, porém acho que essa tua porfia em quereres vingar-te...
- Querer vingar-me? – cortou. – Vingar-me de quem e do quê? Já não perdoamos, eu e o Tomás, ao nosso avô?
- Nazamba, isso é o que o teu emocional diz, mas o recôndito do cérebro empurra-te para este acto ilógico e perigoso.
- Até pode ser, mas se pensares claro, logo verás que o meu gesto ultrapassa tudo isso, vai bem mais longe.
- Vai até aonde?
- Até aos direitos de igualdade para todo o cidadão, vai até à cidadania. Nataniel, não podemos ter cidadãos de primeira uns, e outros de segunda, ou somos ou não somos.
- Mas quem disse que há essa distinção? A Constituição é clara.
- Exacto, a Constituição está clara, mas na prática tornam-na obscura, tu próprio usaste os mesmos argumentos. Porque é que um mulato ou qualquer outra cor não pode governar, se assim for desejo de quem os poderá eleger?
Nataniel sentiu-se agastado e, pela primeira vez no relacionamento de ambos, voltou as costas à esposa e saiu, sem uma palavra. Esta, passou a mão pela barriga, ligeiramente protuberante, sorriu e viu-se fortificada, o marido não tinha argumentos a contrapor-lhe. Remeteu-se a preparar o mata-bicho para ambos, ciente de que tinha a capacidade, o desejo de regressar às raízes africanas sob a batuta dos dois velhos, e de aprender o que fosse relevante ao ofício de dirigir. As mentes, mesmo as rurais, já não eram tão tradicionais, a televisão, entre outros, encarregara-se de as modificar. Bastava-lhe dar força e proeminência a Tuluka como conselheiro espiritual e colocar o tio-avô Nehone como regente nos períodos em que estivesse em Luanda. Estava certa do que eles alentavam, no fundo, a condução do exercício do poder, que a ela pouco interessava por concreto, já que lhe seria unicamente um meio para alcançar um fim.
Uns cinco dias mais tarde, durante os quais Nataniel pôs toda a sua diplomacia, paciência, argumentos e até ameaças para demover a esposa de tão absurda pretensão, a maior das comoções aconteceu quando, ao meio da manhã, um pequeno grupo de soldados, não os mesmos que lá tinham estado, vindo das matas, apareceu com Balanta à frente.
As mulheres, ao reconhecerem a velha, atiraram para o ar os seus gritos estridentes de alegria, logo acompanhadas pelas crianças e pelo burburinho dos homens que, mais reservados, foram observando de longe, sabendo que o soba é que teria que pronunciar-se, até porque da sua filha se tratava. Alertada, Nazamba deitou a correr, meia vestida, as gritos, gesticulando os braços, mesmo não fazendo noção da cara da progenitora, agora cansada, revestida de cãs e rugas sofridas.
- Minha mãe... minha mãe...
Balanta parou, levou a mão ao peito, reconheceu a filha e partiu ao seu encontro, igualmente aos gritos.
- Nazamba... ai Nazamb’éééé!... Minha filha... Ai Marcelo’ééé... nossa filha voltou!...
O amplexo brutal levou as duas ao chão onde rebolaram agarradas uma à outra, em choros e gritos que, para quem de fora, mais pareceriam a celebração de um óbito de que um encontro de familiares separados. À sua volta, as mulheres pulavam e batiam as palmas em cânticos de festejo. A tropa parara a uma certa distância, surpresa e assustada com a manifestação, só lhes fora recomendado que chegassem cedo, entregassem a mulher ao soba grande e partissem logo. Aguardavam que Juba de Leão aparecesse para endereçarem as palavras do seu comandante “Sem Medo” e levarem as dele, após terem comido, não obstante ter-lhes sido recomendado que o não fizessem, que permanecessem o menos tempo possível.
Juba de Leão não apareceu, mandou-os chamar, disse-lhes para agradecerem ao neto o envio da velha, e mandou-os alimentar para que pudessem partir quando desejassem. Nataniel, que se juntara ao avô, passeava nervoso, avaliando se contava, ou não, a tempestade que se anunciava. Considerou não ser seu assunto intervir por agora, Nehone e Tuluka que o fizessem, a sua intromissão seria para mais tarde. Por fim sentou-se e olhou para Juba de Leão.
- E agora avô?...
- O passo não deve ser maior que a perna, vamos deixar a mãe e a filha festejar a sua alegria com os outros. Vai para casa e aguarda que a tua mulher te leve a sogra, mais tarde vou mandar-vos chamar.
- Se o avô acha...
- Mais uma coisa. No outro dia vi o mestre Tuluka e Nehone lá para os lados da vossa casa, foram ter com vocês?
- Connosco? Não avô, teriam vindo de outro sítio. – mentiu, esperando que o velho não notasse. – Porquê?
- Por nada, pareceu-me que vinham de lá.
Virou as costas a Juba de Leão, andando para o outro canto da sala, para que este não lhe notasse o seu ligeiro arfar. Admirou a perspicácia do ancião, talvez já estivesse a chegar aos noventa, na verdade nunca soubera a idade dele, sempre o conhecera velho. mas a mente ainda funcionava, lúcida, o que ele achou, como médico, ser um facto notável.
Mas que idade terá o velho, mesmo?...
- Avô, qual é a sua idade? – perguntou, voltando-se.
A pergunta pareceu apanhar Juba de Leão de surpresa. Seria que o neto lhe estava a ler os pensamentos?
- A minha idade? Que pergunta é essa?
- Sempre conheci o avô já velho! É só curiosidade.
- Nasci há muito tempo. Quando eu tinha a tua idade, o soba grande era o meu tio... E as guerras contra os brancos ainda existiam, e mais estavam para vir. Já lá vai muito tempo. Mas essa pergunta, porquê? Sei que estou velho e a morte não anda longe, não é, meu neto?
Deu um pulo da cadeira como se tivesse sido picado por uma vespa, o que levou Juba de Leão a sorrir e a ter a certeza que Tuluka e Nehone haviam estado na casa dos netos. Agora, faltava-lhe saber o que lá tinham ido tratar, embora o suspeitasse pela reacção de Nataniel. Tinha tempo. Onde se esconde ou guarda a panela de barro, não se procura com o machado.
- Eu?... – e ficou por ali, sem ideias ou palavras.
Estes jovens... estes jovens pensam sempre que enganam os velhos.
- Agora vai para casa, receber a mãe da tua mulher. – disse Juba de Leão a sorrir, espiando Nataniel a sair célere, sem mais uma palavra.
A caminho de casa observou que as mulheres continuavam à volta de Balanta e que a Nazamba estava toda desgrenhada, nunca a vira assim, solta, despenteada por puxar os cabelos na emoção, gesticulante. Apressou o passo e entrou, desnorteado. Sentiu-se impotente, abandonado e com os fados a conspirarem contra si.
A minha mulher, o que se passa com a minha mulher?
Desejava ardentemente voltar, o que dependeria do avô e do enviado que este despacharia ao comissário municipal, solicitando o carro. Sabia que decorreriam horas antes que Balanta fosse lá para casa para ser apresentada, talvez até a esposa se tivesse esquecido de informar a mãe, não obstante a barriguinha, agora disfarçada pelos panos soltos meio amarrados à cintura. Não tivera tempo de colocar um vestido ou umas calças, agarrara no que primeiro encontrara e atirara-se para o meio da aldeia. Como iria Balanta reagir a essa ideia maluca de ela aceitar ser soba grande? Não podia contar com a sogra tinha a certeza, sofrera de igual modo os desmandos do pai, vira o marido partir e os filhos exilados, até ao dia em que Tomás apareceu pela primeira vez na aldeia feito anjo vingador, pensando a mãe morta. Seria uma poderosa voz junto à filha e as duas avançariam desabridamente pelos desígnios de Nehone e Tuluka com as suas trapaças, como é que a mesma adivinhação se repetia igualmente por três vezes, mesmo sob os seus olhos?
Não é que não acredite na força dos antepassados, tudo é possível, mas aqueles velhos andam muito confiados, ali há manobras.
Estava minimamente familiarizado com a auto-sugestão, muitas vezes a aplicara em pacientes que sabia terem sofrimentos hipocondríacos, a aspirina tomando o lugar do remédio milagroso que os curava e os levava à próxima maleita.
Quando o sol ameaçava esconder-se por trás das montanhas, em sua enorme palidez alaranjada, Nazamba irrompeu pela casa com Balanta quase que arrastada, seguidas por uma chusma de mulheres que se acomodaram pelos cantos da sala como puderam.
- Mãe, este é o Nataniel, teu sobrinho e meu marido.- Atirou, assim de chofre.
Balanta olhou para ele a tentar descortinar o parentesco, e por fim acertou.
- Aquele que foi estudar fora, o filho de Epalanga com Zeferina?
- Sim, esse mesmo. Voltou de Cuba médico, conhecemo-nos sem saber que éramos parentes, e depois casámo-nos.
- Muito bem, assim agora você também é meu filho, vem para eu te abençoar.
Sem saber o que fazer, olhando para as outras mulheres e desejando correr com todas elas dali para fora, dirigiu-se à mulher, esperando que esta entendesse e pusesse fim a toda aquela situação angustiante.
- Olha como tu estás, precisas de te arranjar e deixar a tua mãe descansar... estiveram o dia todo fora. – disse, tentando alertar a esposa para a sua ansiedade.
- A nossa mãe quer abençoar-te primeiro, à frente de todos, depois terás a tranquilidade que desejas.
Nataniel dirigiu-se à velha, curvou-se, agarrou nas mãos dela e colocou-as meio na testa, meio na cabeça.
- A sua benção, minha mãe, que ela traga a felicidade à nossa casa e ao nosso casamento.
Ouviu Balanta murmurar uma cantilena que não entendeu e sentiu as mulheres sairem, silenciosas e felizes.
- Estão abençoados e protegidos. Tuluka já vos fez as cerimónias desde que chegaram?
- Não, mãe. Estávamos à sua espera. – mentiu Nazamba.
- Então vamos ter que falar com ele. Quanto mais cedo melhor.
- Obrigado, deve estar cansada e precisa de lavar-se, eu vou dormir hoje noutro lugar. Quando estiverem prontas mandem-me chamar para jantarmos juntos e falarmos tudo o que tem que ser falado. – disse Nataniel, olhando para a esposa, mais uma vez buscando o seu suporte.
- Está bem, depois mandamos chamar-te. – respondeu Nazamba, antes que Balanta pudesse expressar qualquer outro desejo ou intenção.
- Com vossa licença então... – respondeu Nataniel, esgueirando-se de imediato.

INKUNA MINHA TERRA



Uma brusca lufada de ar quebrou uma asa à gaivota, lançando-a para o gelo do canal, onde ficou volteando, atordoada. Vários transeuntes junto à ponte buscavam vias de a salvar, todavia a tarde fria de inverno fustigava as ruas de Amesterdão. Ruas estreitas, calcetadas e escorregadias, ladeando os canais ora gelados, impedindo a navegação das pequenas embarcações que os utilizavam. Ás largas barcaças, sobrava o rio Amstel, pontilhado de blocos de gelo quebrado.

No conforto ameno da residência, uma pequena cave de dois quartos na Prinsengracht, Lito Boal lia uma revista cinéfila, quando a campainha da porta ressoou com insistência. Apressou-se a abrir, pois sabia que nevava e estava frio. Para seu agrado, viu Samu Lenga entrar, exsudando alegria. Abraçaram-se mesmo antes do amigo retirar as luvas, o cachecol e o pesado casaco que o protegiam.

“De onde vens?”, perguntou Lito Boal feliz de rever Samu.

“Acabei de chegar de Estocolmo. E contigo, como vão as coisas?”

Samu Lenga, na casa dos trinta, o rosto meio tapado por uma espessa e escura barba que tipificava o guerrilheiro, era o retrato do quadro dinâmico que fizera vários anos nas diversas frentes da luta contra o colonialismo português. Pela integridade moral e política, pelo multifacetado trabalho desenvolvido nas diversas frentes e pelo domínio de vários idiomas, fora agraciado com o novo posto. A luta emancipalista entrara em fase mais desenvolvida e dinâmica, e tornava-se necessário alguém do seu porte, a nível dos países europeus. A Suécia reconhecia e apoiava directamente vários movimentos africanos, permitindo deste modo a instalação de uma delegação que cobria os países nórdicos.

Lito Boal conhecera Samu Lenga ao ser instruído pela direcção do movimento para se aí se apresentar. Uma forte amizade os uniu de imediato.

Por fim sentados, e com uma chávena de chocolate quente nas mãos, a conversa voltou-se inevitavelmente para Inkuna, a luta libertadora e últimos desenvolvimentos. Depois das questões de maior interesse e mais imediatas terem sido abordadas, Samu tirou dum envelope castanho grande, um maço de fotografias recentes e mostrou-as ao amigo.

Singularizavam momentos da vida dos guerrilheiros, nas matas. Ao olhar para uma delas, o coração de Lito Boal quase parou de bater. Numa clareira rodeada de pequenas árvores, um grupo de guerrilheiros repousava distraído, excepto uma jovem que, de costas, voltara a cabeça como se chamada naquele instante. Sua boca semiaberta, os olhos grandes e vivos como a luz do sol, emanavam toda uma beleza e tranquilidade que contrastavam com a metralhadora pousada no colo. A imagem produzia um efeito forte. Talvez pela carga emocional da fotografia, que no fundo condensava toda uma aspiração pessoal, Lito Boal apaixonou-se naquele momento.

“Meu Deus, Samu, quem é esta miúda? Que coisa mais linda!”, perguntou exultante

“É a Dalila. Para além de ter sido seu instrutor, por coincidência até tirei a fotografia. Tínhamos acabado de regressar de um ataque a um posto português”, informou.

“Que maravilha! Posso escrever-lhe?”

“Se o fizeres brevemente, ainda és capaz de a apanhar em Dar-Es-Salaam onde de momento aguarda a ida para Leningrado. Vai estudar na União Soviética”.

Na manhã seguinte, foi um dos primeiros gestos seus. Sentou-se e redigiu uma carta a Dalila, na qual mencionava que vira a sua fotografia quando Samu Lenga o visitara, e que se quedara bastante impressionado com o que o retracto transmitia. Estava de momento a estudar cinema na Holanda, e dentro de mais três anos, uma vez terminada a Academia, iria apresentar-se em Dar. Caso fosse possível, tentaria visitá-la um dia em Leninegrado. Entretanto, ser-lhe-ia muito grato corresponderem-se.

Durante meses viveu na esperança de uma resposta, de uma aceitação que lhe permitisse encetar uma amizade, embora que à distância. Pensou escrever uma segunda carta, só não o fazendo, por duvidar do paradeiro de Dalila. Quando já interiorizara que gesto fora uma infantilidade, eis que chega um subscrito da União Soviética. Sobressaltou-se de ansiedade, só poderia ser a resposta. E de facto assim o era. Dalila informava-o da surpresa que tivera, nunca houvera recebido carta de ninguém, muito menos da Europa ou da Holanda, lugares que só ouvira falar nas notícias. Que tivera problemas com os camaradas da segurança do movimento, mas logo se tranquilizaram quando mandou o chefe abrir o envelope e ler, para todos, o que lá estava escrito. À parte disso, que teria grande alegria em escrever-lhe, e prometia que responderia a todas as cartas que dele recebesse. Com a missiva, enviara uma fotografia pequena, a cores.

Ao longo de dois anos mantiveram a correspondência, como namorados que o destino separa contra suas vontades. Sem se conhecerem, foram entregando retalhos de suas vidas um ao outro, moldando um sonho que os uniria talvez um dia nas matas de Inkuna. Lito Boal ainda tentou deslocar-se a Leninegrado, todavia a pequena bolsa de refugiado não permitia pagar os 50 dólares diários, que as autoridades soviéticas exigiam aos estrangeiros.

Mais dois anos decorreram até que finalmente se conheceram no Palácio do Povo, em Katola, quando o presidente da república, e comandante-em-chefe das forças armadas, impunha as primeiras patentes aos seus antigos comandantes, agora oficiais superiores de um exército nacional. Através do visor da máquina de filmar, Lito Boal descobriu o rosto de Dalila ao lado de um dos antigos comandantes de coluna. Eufórico dirigiu-se a ela, que de imediato o reconheceu. Abraçaram-se, no amplexo de quatro anos de amizade platónica.

Samu Lenga que tudo observara, sorriu ao virar-se para receber o abraço de um antigo companheiro de luta.

Dalila e Lito Boal recolheram para um canto e falaram. Do momento que se vivia, da pátria livre, do sonho realizado e, por fim, de como ele gostaria que se vissem.

De longe, o comandante ao lado de quem Dalila estivera, observava-os com curiosidade.

Dalila afagou-lhe o rosto, beijou-o na face e disse que gostava muito dele, mas que tinha homem, era aquele comandante que ele vira a seu lado, e apontou, o que fez o mesmo desviar rápido o olhar. Enfatizou que a amizade carinhosa deles, mantida por carta, era uma chama que primeiramente a envaidecera, e que mais tarde se tornara numa afeição real e sincera, algo muito especial e íntimo, mas que nunca poderia ter sido mais do que fora, por não se conhecerem no fundo. Quando na União Soviética, a vida continuara, não parara na beleza do gesto dele, nem na necessidade dela de afecto e carinho, sobretudo porque tão longe da pátria e em país tão diferente. Muitos dos seus companheiros de guerrilha estudaram com ela, daí a ligação que, mais tarde, acabou por estabelecer com o comandante seu homem.

Lito Boal viu o devaneio antigo fenecer, confirmando que os rumos da vida e aqueles do sonho, raramente convergem. Propôs-lhe que se mantivessem amigos, e quando por fim arranjou mulher, Dalila tornou-se achegada da casa e da família que começou a ser construída.

Porém, nunca pararam de se escrever. Coisa só deles conhecida, comparsas num segredo. O desejo de perpetrarem, ou melhor, de não abandonarem o elo que sempre os unira num sentimento de cumplicidade, levou-os, sem que nenhum o tivesse mencionado, a tocarem-se daquela forma. De vez em quando, um recebia um bilhetinho, uma nota, do outro. Não se poderiam negar por completo, sempre quedava a nostalgia que todos os passados consigo carregam.

Os anos passaram, Dalila perdeu o esposo, tornou a casar, alargou a família e, quinze anos mais tarde divorciou-se do marido.

Lito Boal, por sua vez, ao fim de vinte anos de união, separou-se da mulher.

Livres, não ousaram admitir que o rio secara e, frustrados, intimamente desiludidos com o destino, não desejaram olhar para o que restara, as pedras nuas no fundo de um leito pouco profundo, onde o casco de um amor que nunca merecera a confirmação de o ser, soçobrara, por desígnios impenetráveis. Intuíam que se os fados assim o impuseram, seria porque quem tece as teias da vida, não aquiesceu a que algum dia vivessem juntos, sombras separadas e jamais tangentes, num céu insensível.

E, cada em seu canto, continuaram a correspondência, por inconsciente vingança e amor-próprio, cientes de que o que estava feito estava feito.