sábado, 2 de janeiro de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS



O POLITICAMENTE (IN)CORRECTO

Se alguém te enganar uma vez, a culpa é dele;
Se te enganar duas vezes, a culpa é dos dois;
Se te enganar três vezes, és o único culpado.
(Ditado popular alemão)


O conceito do politicamente correcto ainda é relativamente novo entre nós, para não dizer quase desconhecido. Já corrigimos algumas posições, chegamos aos deficientes físicos em vez de aleijados, já dizemos com deficiência visual e invisuais, em vez dos cegos. É um passo que abre o caminho a novas reflexões, que poderão levar à alteração no nosso uso da linguagem, e não só, em relação ao próximo.
Á medida que as sociedades evoluem, assim evoluem os conceitos, as tradições e a visão que fazemos do mundo e do nosso lugar nele. O que em outra hora levou cientistas à fogueira ou à renúncia pública das suas convicções, são hoje leis reconhecidas da física, da astrofísica, da física quântica, da matemática, etc. Todavia hoje, no terceiro milénio e no século XXI, ainda encontramos conceitos, frases soltas, palavras que, de tão banalizadas, não ferem a nossa sensibilidade de humanos, de cristãos, ou puramente de pessoas de fé e da fé, seja ela qual for.
Quero hoje falar-vos de uma dessas aberrações, ligada à cor da maioria das pessoas do nosso continente, ou seja, a negra, e que nos passa despercebida, nestes dias do politicamente correcto. O dicionário que consultei, traz 26 palavras com o radical negro, e delas, uma ou duas únicas não contêm a conotação negativa, o conteúdo pejorativo. Não vou aqui mencionar todas, mas sim algumas daquelas que nos são mais conhecidas e aceitáveis e que, por esse facto, nos tornaram cegos face a nós mesmos, independentemente da coloração da nossa epiderme.
Para começar, quem não tem na família uma ovelha negra? Para nós, aqui em África, pela razão epidermicamente inversa, faria muito mais sentido termos uma ovelha branca na família quando o parente não encaixasse, não é?
Quem de nós nunca esteve, ou está, numa lista negra, por aquilo que pensou, que disse, fez ou que escreveu? Acho que, neste caso, a lista deveria ser da cor do papel em que foi elaborada ou, para os mais artísticos, às bolinhas azuis com riscas castanhas.
Quem nunca ouviu falar das famosas caixas pretas dos aviões, mesmo sendo elas de facto amarelas?
Quando necessitamos de trocar o dinheiro em situações que nos são mais avantajadas, não vamos fazê-lo no mercado negro, quer seja na Mongólia quer na Patagónia?
E quando a vida nos cria situações que só são o resultado da iniquidade ou da falta de sorte, não corremos lestos para o mestre kimbanda as eliminar recorrendo à magia negra? E se o técnico mestre falha, não ficamos frustrados numa danada de maré negra?
Por fim, o diabo, o demo, o belzebu, o satanás, embora a tradição cristã o apresente como um chifrudinho vermelho vermelhinho até ao enroscado rabo, é geralmente tido como negro. E o pecado, sua mais vistosa arma, assim o sendo de igual modo.
Foram pois estas, a nível do pensar e da expressão, parte das mensagens subliminares que determinada civilização criou para impor durante largos séculos sobre outras mais beneficiadas com melanina, seus vários ditames.
Estamos na era do politicamente correcto, para além da própria tomada de consciência, para se começar na família, nas escolas, nas igrejas sobretudo, enfim, em todo o lugar, a irradiar esses conceitos e atitudes, sem receios.
As únicas situações que conheço, e não digo que não haja mais, em que radical negro é usado positivamente, são a negritude, como corrente ideológica e cultural surgida modernamente entre os povos negros africanos, de luta contra a opressão colonialista e de valorização da civilização africana, enfim, do mundo negro em geral. Os que trabalham com números e contas sabem que contabilisticamente estar no preto é óptimo (to be on the black), já que quando há insolvência está-se no vermelho, pois esta é(ra) a cor da tinta que se usa(va) para o efeito.
E, finalmente, como estou a fazê-lo aqui, pôr o preto no branco sobre o que penso desta questão, negritando-a a fim de que sobressaia.

SUMAÚMA


CANTOS

Metamorfoseado
na janela quadriculada
da lua
sinto as noites
arrastarem-se

lá fora
o grilo canta
canta
canta
para me adormecer



TEMPOS MODERNOS

Aprendizes
pronto transformados
em feiticeiros
apagaram incólumes
os tempos do futuro

Restou
na obscuridade
o sonho
de vislumbrar
o eco da esperança
do amor
da lembrança
da dor
sempre ao sabor
de um vai sem vem
que é de todos
e não o é de ninguém

ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS


JOÃO MAIMONA

DIÁLOGO COM A PERIPÉCIA


ACTO PRIMEIRO

A acção passa-se no centro de uma aldeia do município de Maquela do Zombo. Casa do Chefe da aldeia, ornada com objectos de arte típicos da região. Bancos de várias cores enchem a sala principal da casa que representa a cena. Todas as personagens vestem segundo a moda em voga na região excepto o Chefe que veste à tradição da aldeia (Traje antigo de régulo). Ao subir o pano, Kazolawoko, à boca da cena, encontra-se sentado numa cadeira giratória. Trata-se de uma posição temporária: pois não vai permanecer no seu posto durante toda a peça. Ora vai conversando com uma das personagens em cena, ora vai gesticulando, no meio do sorriso, chamando a atenção do público.
Ao fundo, numa mesa com várias folhas de papel, encontra-se o relato. À direita, ao lado do Chefe da aldeia estão algumas raparigas que constituem o grupo coral. Ouvem-se algumas notas de música cheias de melancolia entoadas por elas. Aparece Mengawaku, o primeiro figurante, a falar para o auditório. O coro deixa de cantar. Segue-se um instante de silêncio.

CENA I

MENGAWAKU
(A cabeça inclinada, os braços cruzados, efectuando passos curtos, vai pronunciando as primeiras palavras)
Um sonho tenho eu... um sonho velho e doloroso... E... este sonho é o meu despertador: abandonar esta aldeia sem felicidade... desprovida de tudo... e viver numa cidade que apenas conheço pelo nome e pela geografia. (Breve pausa. Adiantando-se uns passos e olhando para o público. Prossegue, ar triste) Infelizmente o meu destino sombrio obriga-me a permanecer na rua, andar atrás das aves, descobrir as árvores que rodeiam esta maldita aldeia e sobretudo ver a luz do sol que se multiplica, repetindo o ciclo da minha miséria.

MFUMO MADIA
(Bem refastelado na sua poltrona)
Ó meu filho!... o que é que suscitou essas palavras nos teus lábios? Que queres, meu filho?! Estás mal aqui em casa do Chefe da aldeia, teu pai?!

MENGAWAKU
Pai, não me fales em Chefe da aldeia... deixa-me dizer algo sobre o meu estado.

ACTO SEGUNDO

A presente acção decorre numa das salas a confortável casa do velho Kitoko: casa implantada numa aldeia pobre. Inundam o palco poltronas, mesas, armários envidraçados e bancos. Estão em cena quatro figurantes: MFUMO MADIA, ORLANDO LIMA, KITOKO e SIVI. Todos vestem trajos de cerimónia. Ao subir o pano, Kitoko e Sivi encontram-se sentados, falando pelos cotovelos. Abre-se a porta da esquerda, entram Mfumo Madia e Orlando Lima.

MENGAWAKU
Bem verdade, mãe. Diz tudo, mãe... tudo o que tiveres escrito na tua memória. (Olhando para o pai) Pior é a minha situação de aldeão. Estou farto desta vida da aldeia. Quero viver longe daqui... longe daqui... na capital: uma cidade que aprendi na geografia do meu país, Cidade onde existem estradas de asfalto, onde terei ocasião de contemplar grandes edifícios, maximbombos, homens de raça do Padre Ricardo (Com as mãos poisadas no peito e a cara virada para o tecto) Quero ver o meu sonho transformar-se em realidade: viver na capital, para ver de perto a ordem e a desordem que caracterizam as grandes cidades. E sobretudo assistir a um espectáculo fortuito: o das crianças que vão è escola para descobrir um outro mundo, vestidas de roupas que para mim, filho do Chefe da aldeia, são apenas um sonho.

MAKIESSE
É uma miséria! É uma miséria! O povo todo da aldeia vive do trabalho de campo e da caça. E nesse trabalho as famílias ganham uma miséria, agitando assim a bandeira do sofrimento.

MFUMO MADIA
(Avançando uns passos para Makiesse e Mengawaku)
Ora bem meus senhores. Esta situação que atravessamos não deve constituir inquietudes para ninguém. Somos um povo pobre porque pertencemos a um país ainda subdesenvolvido. E não há nenhum país no mundo sem aldeias... sem as dificuldades que inferiorizam a nossa vida. Nós estamos com a cabeça cheia de ideias críticas-destrutrivas, e não de iniciativas para melhorar a nossa condição. O meu filho, Mengawaku, quer mudar de vida. Perfeitamente. Quer uma vida diferente... quer conhecer uma quadra onde não haja miséria e sofrimento... Sim, estou de acordo com o que disseram. Mas devem saber que na cidade nada cai do céu. Ninguém recebe gratuitamente as coisas deste mundo... deste mundo! (segue-se um momento de silêncio entre os presentes. A intervenção de Mfuno Madia marcou os outros figurantes)

MAKIESSE
(Delicadamente abandona o seu banco. Dirige-se para o auditório sorrindo)
São belas as palavras que o Senhor, Chefe da nossa aldeia, acaba de pronunciar. (Voltando-se para o marido, continua falando no meio do sorriso) Olha, o meu filho não pode continuar nesta vida de inferno. Deve acabar de acompanhar a mãe às plantações.

MENGAWAKU
É o que eu quero, mãe. Abandonar o campo. Acabar com esta vida de dores do excessivo esforço na lavra.

MFUMO MADIA
Posso chegar a uma conclusão... Vivo com pessoas que se consideram infelizes. Pobre gente! Abandonar a aldeia! E pensam que é uma solução viável. Isso é uma falta notória de consciência, falta de noção de responsabilidade. A aldeia também precisa de gente! Não sabem?!



MAKIESSE
(um pouco exaltada)
Cala-te! Não admito que fales para mim nesses termos tão injuriosos. Não achas que somos seres infelizes?! E que vivemos numa paisagem infeliz?! Prefiro viver em estado de pobreza numa cidade do que nesta aldeia, tua propriedade. Não posso suportar a imagem pálida desta aldeia. Ai-iii... mpasi-za-nza

MANGAWAKU
Falaste bem, mãe! E, é realmente uma paisagem infeliz. E eu diria ainda triste... esmagadora... envolta numa casca de miséria. (Com serenidade, adianta uns passos para o pai e continua falando) E, é realmente uma imagem pálida. E nós somos gente perdida, gente abandonada nesta paisagem que oferece a uma centena de famílias uma atmosfera morta. Vejamos. As crianças da aldeia nunca viram um boné, a bicicleta, os brinquedos... palavras que aprenderam na primeira classe. E na cidade essas coisas pululam. Até as crianças de famílias pobres as possuem... (Breve pausa. Vai à boca da cena, olhando para o auditório) E posso alongar a minha lista: as crianças da aldeia nunca viram o Presidente da República... que apenas conhecem pelo nome e pelo retracto que existe algures nas escolas onde vão aprendendo coisas que talvez nunca conhecerão. E se não fossem as visitas do Padre Ricardo nunca teríamos visto uma viatura. E na cidade há viaturas de todas as cores... as crianças necessitam dessas coisas para nutrir a vista.

MFUMO MADIA
Desaparece daqui! Desaparece daqui Olha que tenho o poder de te mandar para a cadeia. Estás a ferir-me. Desaparece daqui!

Concordo com o meu filho. (Breve pausa. Concentra-se durante uns segundos e prossegue) O meu filho levantou a questão que preocupa as nossas crianças. E também deveria preocupar os pais... A chegada da viatura do Padre é um acontecimento de extrema importância. É a única que visita a aldeia... isso é uma verdade! Sai da cidade para a aldeia... só para testemunhar a oração que o Padre faz em nome da comunidade. O Padre é o nosso salvador. Dá-nos tudo: orações, leite em pó, cobertores para as nossas crianças... é o nosso pai. A prova? A sua chegada rompe o silêncio que se estabelece durante a semana. A mim se me afigura que a sua presença entre nós é um presente do céu. Através do padre, descobrimos a grandeza da bondade do Senhor e sobretudo da bênção.

MENGAWAKU
Mais duas palavras, mãe... duas palavras. E vamos convencer o pai!

MAKIESSE
Sim... filho... podes falar.

MENGAWAKU
Sim, vou apenas dar ma achega à observação da mãe. O Padre é o nosso deus. A sua presença chega a metamorfosear a atmosfera da aldeia. Todas, crianças, jovens e velhotes empilham-se à volta dele para vê-lo de perto, apertar a sua mão e ouvir as palavras que pronuncia.


MFUMO MADIA
(Concentra-se. Recupera o seu fôlego)
Ah, ah!. O meu povo está enganado. Este povo que fica angustiado, que se interroga sobre a escuridão da sua paisagem. Está enganado o meu povo! O Mpelo é o maior explorador do mundo... explorador que espalha palavras destruidoras sobre a origem do homem, explorador que surge no rosto da multidão para enganá-la com palavras embaladoras, explorador que ajudou os colonialistas que contribuíram em muito para a miséria e o atraso cultural das nossas comunidades. (Breve pausa. O auditório bate palmas. Adoptando um tom de violência, continua, declamando versos do Autor de “A renúncia impossível”)
Acabai com os missionários
os seus sofismas
os seus milagres
inventados para justificar ambições e vaidades...

E querem ir para a cidade! A aldeia vai ficar despovoada?! Os rapazes querem ir para a cidade... e as raparigas vão casar com quem?! Libertem-se dessas ideias obscuras... Libertem-se... Libertem-se.

MAKIESSE
(Respondendo à pergunta posta por Mfumo Madia)
Contigo! É possível que seja contigo... os chefes da aldeia são adeptos da poligamia.

MENGAWAKU
Makiesse! Minha mãe! Estás mal informada! A aldeia vai ficar sem raparigas. Os muatas da cidade Vêm para aqui raptá-las para servirem de criadas... E as raparigas estão decerto satisfeitas.

MFUMU MADIA
Creio que todos ouviram as opiniões do meu filho. Agora compreendo as suas preocupações... são decerto um grito de desespero, de angústia... vou deixá-lo em paz... e fazer a sua vida segundo os desejos que animam seu coração... vou... vou deixá-lo em paz,

MANGAWAKU
(Volta-se para o pai, vai falando todo satisfeito)
Gostei da tua opinião pai. Julgo que as tuas palavras alumiarão os meus futuros caminhos na cidade que me vai acolher dentro de dias. Tenho que sair daqui, pai. O filho de Makubi saiu daqui... e hoje é motorista dos serviços de Saúde... o filho de Makengo fez o mesmo,,, e hoje é funcionário do maior cemitério da capital onde regista os defuntos e tem um salário animador... o filho de Mavunza deixou a aldeia e hoje faz uma candonga muito fértil... anda numa roda-viva entre o Norte e o Sul, vendendo milho e peixe! Devo sair daqui, pai. Vou trabalhar. E serei um homem honesto, consciente. Serei um outro Mengawaku. Nzambi (4).

MFUMU MADIA
Decerto: vais para a cidade! Mas não é para seres motorista... candongueiro... (Olha o filho, indicando-o pelo dedo) Tu tens a sexta classe, poderás ser um funcionário dos Serviços Públicos... e trabalhar para a restauração económica do País!

MAKIESSE
(Interrompendo-o energicamente)
Já pensaste no alojamento?! No dinheiro necessário?! Não há ninguém para lhos dar! O tio que podia ajudá-lo já desceu à
terra... Tinha tudo esse pobre homem... Era funcionário do Estado. Tinha uma boa casa. Com quintal, capoeira... Só lhe faltavam filhos e uma mulher. Depois da morte, com a penúria de habitações que existe nas grandes cidades, o Estado entregou a casa a um colega de serviço... E agora!

MFUMO MADIA
Está certo. Mas o meu filho deve mudar de habitat. Viver numa cidade. Abrir-se ao mundo, interrogar a Natureza e a Humanidade e sobretudo formar a sua concepção do mundo. Assim, a sua presença na Universidade torna-se imperiosa. Quem está preocupado agora sou eu. Deixem-me pensar no futuro do meu filho.

MAKIESSA
(Levanta-s3e atrapalhada, senta-se de novo)
Vamos solicitar uma bolsa de estudos ao Padre Ricardo...

MFUMU MADIA
(Quase num tom de excitação)
Queria mandar-te calar... mas... o teu Padre não aceitará... Ele concede bolsas de estudos aos órfãos E o Mengawaku não o é! Outra barreira: o Mengawaku é filho de um representante do Governo Central. E o teu Padre, explorador das Sociedades, não concede bolsas de estudos aos filhos de pessoas que representam o Governo. Mas vou pensar nisto!

MENGAWAKU
(Levanta-se com um ar triste)
Quem me dera ser órfão... e descendente de um camponês qualquer!
(Depois destas palavras amargas de Mengawaku, a porta da esquerda abre-se, saem Makiesse e Mengawaku e entra Kalunga. Traz uma meia dúzia de garrafas de Nsamba, a mão esquerda carrega documentos contendo projectos a apresentar ao chefe Mfumo Madia. Este ordena ao grupo coral que ofereça mais um trecho de música como sinal de saudação a Kalunga).

CENA II

Casa de Mfumo Madia que recebe a visita de Kalunga

KALUNGA
Bom dia, Excelência. Estou encantado por ver o Senhor.

MFUMU MADIA
(Levanta-se lentamente)
Bom dia, Kalunga. Sê bem vindo a esta casa. Senta-te.

KALUNGA
(Depois de uma curta pausa)
Bem! Meu Senhor, como é vai a vida da aldeia?
MFUMU MADIA
As últimas notícias que possuo dão-me conta de uma situação sem perturbações... de dias de calma... confesso que tudo vai bem. A massa adulta oferece-se de corpo e alma para os trabalhos do campo.

KALUNGA
Tudo vai bem? Tem a certeza?

MFUMU MADIA
Tenho a certeza. Porque creio nas informações dadas pelo meu relator que percorre toda a aldeia dia e noite.

KALUNGA
(ri-se)
Pessoalmente, tenho outra opinião sobre a vida na aldeia... Mas antes de o elucidar sobre a actualidade da aldeia que dirige, queria oferecer-lhe um copo de Nsamba.

MFUMU MADIA
Muito bem! Espero que tenhas recolhido todos os dados ligados à vida da nossa aldeia e que tenhas a habilidade suficiente para transmiti-los ao teu interlocutor.

KALUNGA
(Vai falando com ar um tanto calmo, enquanto Mfumu Madia vai bebendo)
Sou muito pessimista quanto ao futuro da aldeia... Por mim, aconselho o Senhor a demitir-se.

MFUMU MADIA
(Surpreendido com esta asserção, inclina-se. Há um silêncio)
Como hei-de demitir-me se as coisas vão bem e o Governo Central está satisfeito com a minha política? (Levanta-se) Suponho que o povo é favorável à minha política!

KALUNGA
A verdade é que os nossos prognósticos são divergentes... (Curta pausa. Volta a dirigir palavras a Mfumo Madia) A aldeia encontra-se numa situação asfixiante, com uma pluralidade de episódios. O sofrimento, a miséria... constituem os males da nossa aldeia. E todo o povo se queixa. (Breves pausa. Bebe um copo de Nsamba. Prossegue, ar tranquilo) Queira perdoar-me esta interrupção, e peço desde já desculpas porque irei alongar a minha comunicação.

MFUMU MADIA
Acho que é desnecessário pedir desculpas. Estamos reunidos para analisarmos as condições de vida da nossa colectividade. Deixo-te falar... deixo-te dizer tudo sobre a marcha da nossa aldeia.
KALUNGA
(Exibindo o rosto de uma pessoa satisfeita)
Está muito certo. Agradeço a sua intervenção. E faço votos para não tornar a pedir desculpas. Esclarecerei as minhas palavras em nome daqueles que vivem neste mundo atravessado por uma fenda de pobreza. E não só. (Olha atentamente a sala e dirige-se ao auditório) Permitam-me, senhores convidados, apresentar-vos o quadro de hoje... O quadro que desfila sob a nossa vista. Não são... sim não são palavras calculadas. Nem períodos nutridos de código fraseológico. Mas sim imagens concretas do nosso drama... O nosso quotidiano veicula uma gama de dificuldades que se resumem em imagens de mal-estar. As nossas comunidades sofrem... Vivem numa aldeia miserável. E nós fazemos parte dessas comunidades e somos humanos! Se realmente queremos exprimir as nossas opiniões e ideias sobre este assunto acalorado, devemos adoptar atitudes honestas e conscientes...

MFUMU MADIA
Obrigado pelas palavras que acabas de pronunciar. Creio que... creio que as coisas devem ser analisadas por todos nós, sem distinção de categoria.
Podes falar... podes falar... pois tens a palavra. No entanto, peço-te que uses das tuas faculdades intelectuais e que faças uma análise objectiva. Podes falar.

KALUNGA
Excelência, sabe que a aldeia vai ficar despovoada?! As nossas raparigas estão a ser raptadas para as grandes cidades onde são empregadas como criadas, como meninas de cozinha... E os rapazes? Mas já deve saber... (Quase como quem vai chorando) É miserável a nossa situação. Não há escolas. E os rapazes preferem abandonar a aldeia, viver na cidade onde há coisas agradáveis.

MFUMO MADIA
Não acredito, não acredito que a aldeia fique despovoada. Podem sair... podem sair... mas o processo reprodutivo continua. E sempre haverá povo. Um povo firme que acredite no futuro e eu também tenho esperança nesse futuro.

KALUNGA
Sim, também acredito no futuro. Mas a verdade é que a nossa situação é lamentável. Não há dispensários nem hospitais. Para o tratamento de doenças, o povo tem de recorrer a práticas tradicionais. E essas práticas, não são próprias deste tempo. Estão ultrapassadas, estamos no tempo moderno.
MFUMU MADIA
Creio não haver medicamentos tão eficazes como as plantas medicinais. Creio... creio nisto tudo. As coisas são claras! Tenho oitenta anos. Nestes oitenta anos, nenhum comprimido tomei, nenhuma seringa comigo contactou...

KALUNGA
É verdade. É verdade porque o senhor tem muita hortaliça à disposição, o que lhe confere maior resistência às doenças.

MFUMU MADIA
(Ri-se e levanta-se, volta-se para o lugar de Kalunga, pondo a mão direita nos ombros deste)
Bem. Também podias dizer que foi uma coincidência feliz! Mas não é. Isto demonstra uma certa habilidade dos nossos antepassados no domínio da terapêutica.

KALUNGA
Uf! Uf!... Que vida é essa? Percorri os caminhos da aldeia esta manhã. Vi crianças nuas desfilarem nas ruas. Pobres, ventres inchados. Fui acolhido pela indignação: de todos os cantos, sentia-se o aroma da miséria, da ignorância, do sofrimento tumefacto e no fim tive que fechar os meus dois olhos para não ver a nudez. E sou uma pessoa de esperança.

MUFUMU MADIA
(Recai na poltrona, fala com voz quase lamurienta)
Oh Kalunga! Fizeste uma boa observação... tens a vista para isso. Mas temos de trabalhar para poder apagar esta paisagem negra. Só assim é que vamos servir melhor a nossa colectividade. Temos de pensar nas nossas restrições e possibilidades. E o Governo tem possibilidades de melhorar a imagem da nossa aldeia. Temos que inventariar todos os problemas que a nossa colectividade vive e canalizá-los para o Governo Central. Não foi assim que as outras aldeias do país procederam? E hoje...?!

KALUNGA
Bom! Eu sei muito bem que o Governo tem poder financeiro suficiente para mudar tudo! Mas olhe, há um outro assunto que considero espinhoso.

MFUMO MADIA
Qual é? Qual é?
KALUNGA
(Dirige-se-lhe num tom calmo, a mão esquerda no bolso correspondente das calças e a direita pousada no peito)
Já deve saber... pois todos os habitantes de Mbanza Mongo foram informados. Somos pobres. Está certo. Mas agora na aldeia nasceu um clima de contraste... O filho do velho Kitoko construiu uma casa para os pais,,, uma casa de 36 compartimentos para duas pessoas?!

MFUMU MADIA
Estás a falar a sério? Quem será o filho do velho Kitoko?

KALUNGA
(Aproxima-se do Chefe)
O povo está revoltado... está mesmo revoltado. O filho do velho Kitoko, Ministro de estado, devia pensar mais nos interesses da colectividade construindo estradas, pontes, escolas, hospitais...
do que instalar aqui aquilo que o povo considera hoje um escândalo. É um autêntico escândalo. A casa tem tudo: energia eléctrica, coisas ricas que vêm da cidade como bebidas alcoólicas, carne congelada, água mineral... é, é, é realmente um escândalo.

MFUMU MADIA
Muito bem! Vamos escrever ao Governo Central: exalar a nossa tristeza, o nosso sofrimento e ainda o nosso protesto e a nossa indignação. E penso que o Governo vai tomar medidas a favor da colectividade.
(Desce o pano lentamente)

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO

FILIPE CORREIA DE SÁ
Jornalista, nascido a 27 de Maio de 1953, no Balombo, Angola, reside em Cabo Verde desde 1985. Neste seu primeiro livro, cujo título busca o nome numa famosa cordilheira de Angola, o autor fala-nos de um reino antigo de vastas planícies e montanhas, no sul do mundo, e narra uma história sob as chamas da fogueira dos Passados, guardada por Todo o Mundo, o renascido.


ESTAMOS JUNTOS NO REINO ANTIGO

Um reino antigo ocupa vastas planícies e montanhas no sul do mundo. As águas brilham entre as matas e os canaviais, tombam, por vezes em cachoeiras prateadas, sobre corpos serenos que se banham nos rios.
Estamos Juntos, de pé, de braços abertos a inspirar da manhã, a cheirar a guano, os aromas na sua temperatura, de palha húmida e estrumada, as lufadas ácidas das gajajeiras a chamar os mercadores do pólen. A casa dele no cimo de um morro debruça-se sobre o rio que passa em baixo onde peixes abundam. O marulhar da água a correr extingue-se no fundo de uma garganta de pedras a cachoeirar numa ravina. O rio continua para longe, recuperando, mais à frente, os braços que estendera para trás dos morros ou nas depressões do caminho.
Era frequente passarem caravanas ali perto, sítio ideal para reconfortar homens e alimárias, num movimento cíclico, regular.
Ao longo do tempo, sementes viajantes no lombo das manadas transumantes, de gnus e palancas, germinavam árvores de vário porte, muitas já então na época de fazer pender dos galhos encurvados frutos sumarentos de apetecer. Manga, fruta-pão, gajaja, pitanga, banana, goiaba, maboque e outros tantos.
A pouca distância da casa de Estamos Juntos, passava uma das rotas das caravanas dos mercadores, rede infindável que circulava por todo reino. O movimento aumentava de dia para dia, naqueles últimos tempos. Alguma coisa se estaria a passar, pensava, embora estivesse longe de saber o que seria e não mostrasse sinais particulares de inquietação pelo que concluía.
Raras pessoas apareciam na sua morada. Não era visível de baixo, protegida por uma camuflagem de árvores, pedras cinzentas enormes e uma série de outros cumes com melhor acesso. Às vezes aproximava-se gente, mas só mesmo quem precisava de alguma coisa. Apenas o acidental reflexo de um utensílio ao Sol, a bruma dos fumos, o som de um animal, o rodopiar das pombas fazia saber da presença de alguém ali a morar. Se carecia de um produto, punha-se a caminho, descia para o acampamento mais próximo. Sabia das notícias desta maneira, enquanto procurava o que pretendia, entre os mercadores. Se não havia num, procurava noutro, assim ia ouvindo. Conversar, conversava pouco, não se demorava muito nas falas, porque não entendia a maior parte das conversas.
Estamos Juntos tinha sido criado ali, naquele cume de morro, pelo avô, que um dia disse: “vou-me embora, tu ficas aqui. Ensinei-te tudo o que um homem precisava para viver, mesmo na solidão. No momento propício, saberás do resto, aquilo que desconheces ou o que esqueceste e esquecerás. Preparei-te para enfrentares a solidão. Agora vais ficar sozinho, eu não volto mais”.
Estamos Juntos perguntou então para onde é que ele ia e por que não voltaria mais. No peito, um aperto subia devagar, um nó na garganta.
O avô disse que tinha chegado a hora dele, de abandonar os terrenos deste mundo. Chegara até ali durante o tempo de o criar. Agora já era gente que podia tratar de si mesmo, que nunca se vira ninguém crescer sozinho, nem os bichos das goiabas; quem os põe lá é mesmo a mãe deles, com tudo preparado. E que não voltaria era uma maneira de dizer, sabe-se lá, lá talvez voltasse, mas não com aquela cara e aquele corpo, seria doutra maneira. E não disse mais porque estava muito cansado e ainda teriam de andar até ao sitio onde se separariam.
Chegaram ao pé da montanha. O avô sentou-se numa entrada muito escura entre duas pedras e disse:
- Ouve então o que te digo. Aquilo que foi até agora e vai acontecendo, já não existe mais, só mesmo no pensamento mais no fundo que a gente guarda sem mexer muito. Como aquela água da cacimba ou da lagoa, onde por vezes te levava, para ficarmos a olhar as coisas a passar à nossa frente e dentro das nossas cabeças. Uma coisa vou repetir: deves sempre guardar bem, tudo quanto te deixei, principalmente o Passado que não podes perder. Se não vais sofrer grandes tragédias. Nele não podes inclinar demais o teu coração, como também não o podes afastar demais.
Fica só com o teu e deixa o dos outros que a eles pertence, só assim pode existir um que seja de toda gente. Como esta pedra que se apoia apenas com um bocadinho do seu corpo nesta outra, sem cair nem para um lado para o outro. Agora vem, vou entregar-te o teu Passado.
Entraram. Lá dentro estava frio e o eco dos seus passos liquefazia-se contra as paredes rochosas sobre as águas transparentes de uma lagoa; a luz do sol enfeixava-se, com muitas cores, através de umas aberturas, por onde o vento silvava.
O avô desembrulhou dos panos um objecto que Estamos Juntos via por vezes lá em casa, parecia um cajado. Feito de argila branca e de madeira de munhango, gravada a fogo, tinha o tamanho de uma perna, do joelho para baixo. Das zonas mais escuras e recuadas da gruta emanava uma luminosidade que dava vontade de acariciar com a mão. O avô tirou um outro, idêntico, mas menos luzente. O rosto dele vencia a escuridão.
- Este aqui, mais brilhante, é o meu Passado, este outro é o teu, que passarás a guardar, é a tua própria vida. Se o perderes, grandes males poderão acontecer, assim como a outras pessoas.
Ao fundo da gruta, na concavidade de uma pedra, ardia um fogo vivo. O avô passou por ele o Passado de Estamos Juntos rolou-o depois em areia branca e em areia negra e também na terra. De seguida, sempre a falar em voz baixa, e a soprar, o mais velho dirigiu-se para os feixes de Sol com vento e girou o Passado entre palmas das mãos, durante alguns momentos. Mergulhou o Passado dele na água. Quando o retirou passou-lhe com a mão várias vezes. Manipulou o outro Passado, até ficar completamente humedecido e submergiu-o, por sua vez, na água da lagoa. Repetiu a operação do Fogo, depois da qual o Passado de Estamos Juntos, já com outro brilho lhe foi entregue.
- Agora podes ir. Trata bem do Passado, muito te ensinará. Trata-o mal também muito te ensinará. Aquele que o perde, aquele que o rouba, aquele o empresta, aquele que não o limpa, aquele que não respeita, muitas dores virá a sofrer.
Estamos Juntos perguntou:
- Avô, quando chegar a minha hora, eu também tenho de entrar aqui?
- Meu filho - disse o mais velho - quando chegar a tua hora vais saber o que fazer. Tudo se fará conforme o que deve ser feito aqui ou noutro lugar, desta ou doutra maneira. Fica bem.
O avô entrou na gruta e Estamos Juntos foi-se embora. Regressou ao cimo do morro e passou a morar sozinho. O tempo foi andando. Nos dias e nas noites servia-se dos ensinamentos depois mais velho.


MBOA, LELA E PENSAL NO SONHO DO REI

Por essa altura, os negócios do reino não estavam em bom estado. O rei procurava saídas para dar conforto ao povo. De todos os lados, surgiam notícias que não lhe agradavam. Gente procurava-o diariamente para se colocar sob sua protecção. De acordo com um costume antigo que obriga o soberano a dar guarida a quem o procura. Acrescentou às suas ocupações habituais aquelas que sem ele não frutificavam.
Os cofres do reino estavam na penúria, o dinheiro desaparecia e o que circulava tinha pouco valor. No mercado, só se comprava a troco de mercadoria. Quase todos se recusavam a aceitar dinheiro. Um pano valia um boi. Os mercadores viam-se e desejavam-se para transportar o produto das suas vendas.
Os campos não produziam por causa da seca. Ir para a guerra não era uma solução, pensava o rei com a maioria dos seus conselheiros. A situação nos reinos vizinhos não era muito melhor. Os mais distantes eram demasiado poderosos para que se atrevessem a ir até lá. A guerrear. A longa caminhada bastaria para dizimar metade dos seus soldados, sem contar as guerras que teriam de travar ao longo dos reinos que fossem atravessando; o estado enfraquecido dos domínios do rei poderia atrair a cobiça de algum vizinho mais ambicioso e aventureiro. Tudo isto preocupava o soberano. Já havia notícias de pilhagens: aldeias subitamente assaltadas e arrasadas por misteriosos bandos; gente e povoados inteiros que desapareciam, sem deixar rasto.
Os adivinhos não conseguiam dar respostas capazes de conduzir o rei a tomar uma decisão acertada, embora lhe dizimassem as capoeiras nas consultas. Era uma ou mais galinhas de cada vez, conforme os casos. Por vezes cabritos e até mesmo bois. O rei meditava nas soluções a adoptar.
Uma noite, das raras noites em que adormeceu, teve um sonho. Vinham três mulheres pela estrada: uma trazia um cajado, a outra um pote de mel e a terceira uma criança de colo que amamentava. A criança crescia e ficava do tamanho da mãe sem sair do colo dela e depois voltava a ser de novo pequenina e até quase desaparecia, voltava acrescer toda num só olho, límpido como só as crianças são capazes, e onde, sonhando, o rei mergulhou seu espírito inquieto. As três mulheres caminhavam à frente dos olhos dele a olhar para lá de si sem saírem de lá. Ao mesmo tempo que via o que elas viam de dentro dos seus olhos, olhava-as de frente, na paisagem. Uma delas parou, as outras duas imitaram-na e ela disse:
- Agora aqui sozinhas podemos soltar as nossas mágoas.
- Como dizer aos nossos homens que nos roubaram? Que vai ser deste menino?
E as três cantaram em coro:
- Nada lhe poderá saciar sua fome?
Fome que não tem mel, nem pau que lhe afugenta.
Roubaram o ventre de sua mãe de onde sai o leite e a vida.
Ai se algum rei nos visse.
Poderia ficar a saber
A dor que nos revela o
momento que nos espera
nas matas do futuro.
Haverá fogo para aquecer nossas esteiras
Nas noites mais frias que hão-de vir?
Mais três mulheres apareceram e depois mais três e mais três. Abriu-se um imenso campo, vasta xana inundada pelo canto delas, três a três. Cada uma com o seu cajado, o seu pote de mel e a sua criança.
Começaram a dançar, a rodar, e numa volta de roda os panos abriram. Dentro deles não tinham nada, era só um vazio. As crianças choravam, as caras delas aproximaram-se e fundiram-se numa só e enorme cara a ocupar o sonho todo, uma grande aparição: de dentro da cara, explodindo em cor e espaço sem som, espalhando-se, saiu um rapaz com cara de sonho. Ajoelhou-se na terra, mergulhou o braço no chão, logo a abrir-se parecia água, e tirou de lá de dentro o rei.
Acordou confundido com a visão mas apesar de toda a preocupação sentia-se bem-disposto. Alguma coisa começava a acontecer. Foi espreitar a noite que era de Lua Cheia. Resistiu ao impulso de acordar a rainha Mboa, para lhe contar o sonho que tivera. Ouvia o som dos animais nocturnos num uníssono de prestações solitárias, de mabecos a cigarras e onças; uma jibóia arrastava-se junto aos currais, julgou ele perceber pelos sons que lhe chegavam através da cinza da noite fria. Mas não desvendou o significado do sonho.
De manhã cedo, no dia seguinte, mandou convocar os adivinhos e conselheiros. Nenhuma das interpretações satisfez o rei.
Depois de muitas horas de elucubrações infrutíferas, um conselheiro pediu a palavra ao rei com uma vénia breve. Deu uma dobra no pano, num gesto quase inconsciente:
-Rei, duvido que os teus adivinhos consigam resolver este enigma tão depressa, assim como nós os teus conselheiros e sábios, que achaste por bem convocar. Tens de reunir todas as aptidões capazes de trazerem a este recinto a resposta necessária, a única verdadeira. Qualquer um de nós se apercebe que o teu sonho se refere aos grandes problemas do reino. Mas para chegarmos às resposta, todos têm de participar.
-- Mas então – disse o rei – estão aqui os adivinhos mais célebres deste reino, todos os meus conselheiros, quem mais falta?
O mais velho prosseguiu:
- Faltam as tuas mulheres que não convocaste. Devo recordar-te que já há alguns dias elas pediram para as receberes, o que te comuniquei em devido tempo, pois tive o privilégio de ser solicitado pela voz da primeira, a nossa rainha Mboa. Ora, se te lembras, não as quiseste receber.
O rei lembrava-se. O conselheiro tinha-lhe transmitido o pedido das mulheres mas no meio das preocupações não encontrou oportunidade para se encontrar com elas e mandou-as esperar.
- Sim, lembro-me. Mas o que é que as mulheres têm a ver com o meu sonho?
- Talvez elas te possam dizer se as escutares.
Ficou a pensar naquilo. Teriam sido as mulheres que lhe mandaram aquele sonho? Tudo era possível, reconheceu para ele próprio. A rainha Mboa era muito bem capaz de organizar uma operação daquelas. Mandou que as mulheres fossem falar com ele. Ordenou a suspensão do Conselho enquanto as aguardavam.
Pensativo, contemplava alheado os conselheiros a conversar. Os seus olhos saltavam indiferentemente pelas diversas figuras espalhadas pelo salão. Há muito tempo que não visitava as suas mulheres. Tinha lá vontade de se meter nos braços da rainha Mboa ou das suas duas outras concubinas jovens e fogosas, que lhe faziam esquecer as tristezas e outras penas, quando o reino estava num estado que caía aos pedaços sobre as suas cabeças? Aliás, ainda bem que há muito tempo tinha decidido dispensar as outras quarenta e sete mulheres do seu harém, precisamente na altura em que as finanças entraram em declínio. Era demais para o orçamento e para a sua resistência. Mas nos seus braços poderia, pensou também naquele momento, encontrar o aconchego para chegar a uma boa ideia.
As mulheres chegaram. À frente, imponente, esbelta, a sacudir as pulseiras e as missangas do seu cabelo com o seu porte de felino cruzado com gazela, a rainha Mboa abria o caminho para as outras duas rainhas, não menos vistosas. Passavam entre o silêncio dos olhos e as vénias dos homens. Em tempo, os reis contentavam-se a descobrir brilhos de incêndio nos olhares dos dignitários, enquanto as mulheres passavam, as favoritas, como a rainha Mboa primeira entre as primeiras, principalmente Muitos chegaram ao ponto de perder literalmente a cabeça, no cepo. Este rei, porém, estava absorto e quase lhe escapava a luz dos olhos amendoados das amantes.
A rainha Mboa saudou-o, todos o saudaram, e disse:
- Temos procurado falar contigo, mas os teus conselheiros disseram que andas muito ocupado e tu mesmo mandaste dizer que esperássemos. Ora, o mesmo que te preocupa, o estado em que estão os assuntos do reino, obriga-nos a falar-te. Por isso te mandamos o sonho que tiveste esta noite.
- Afinal sempre foram vocês. Bem me parecia. Mas esquecem-se que infringiram uma lei que proíbe que se mandem sonhos ao rei, a não ser devidamente autorizadas?
- Sabemos perfeitamente. Quanto a essa lei, espero que não te esqueças que eu, a primeira rainha, tenho o direito de te fazer sonhar, se for essa a única forma de entrar em contacto contigo. Antes de tomar essa decisão consultei os conselheiros, podes confirmar.
O direito era dado à rainha de fazer sonhar o rei, já por várias ocasiões, nos tempos mais remotos, tinha salvo o reino de situações perigosas em tempo de guerra, quando os mensageiros estavam impedidos de furar as linhas inimigas. Através do sonho, as rainhas podiam enviar as mais diversas mensagens.
- Bom, então falem, eu escuto – ordenou o rei.
- A razão da nossa vida – começou a rainha Mboa – é a força da nossa gente. Mas mitos estão a perder essa força. Está a acontecer uma coisa muito grave: há Passados a desaparecer antes do tempo deles s esgotar. E como tu bem sabes quem não em Passado fica sem força.
- Mas como é que os Passados estão a desaparecer?
- Não sabemos senhor. Tanto pode ser algum fenómeno estranho, como pode ser puro roubo!
- Roubo? Mas quem é que se atreveria a roubar os passados? É um crime impensável Ai de quem se atreva…! Estaria a desafiar as leis mais severas que eu guardo!
- Não sabemos quem, mas mandamos investigar e somos levadas a acreditar que se trata de roubo. Aqueles que foram interrogados sobre o desaparecimento dos seus Passados pouco sabem. E muitos não se atrevem a dizer nada, porque o assunto é demasiado grave para as suas vidas. Como disseste, quem perder o Passado está sujeito a grandes e duras provas!
- Isso é verdade! – Disse o rei.
- Nós pensamos numa forma de tentar resolver o assunto, convocando a coragem da nossa gente, pela ambição que todos têm em ti, principalmente quem é mais jovem
A rainha Mboa sentou-se ao lado do rei e virou-se para a assembleia de nobres. As outras duas rainhas, Lela e Pensala, fizeram o mesmo.
O rei redobrou a atenção:
- Chegou o momento de autorizares o casamento da tua filha, a princesa Makemaka. Manda avisar por todos os cantos do reino que quem se considerar com o direito à sua mão poderá candidatar-se. Aquele que casar com ela será feito príncipe e contigo aprenderá a governar os interesses do povo. Porém, há uma condição que se não for cumprida eliminará automaticamente o candidato: é necessário apresentar o respectivo Passado!
- E que vantagens obterei, uma vez que até aqui só eu tenho dado? Primeiro a minha filha e depois o meu reino? Que receberei em troca?
- Não vês, ó rei, que com isso levarás os homens a recuperar os Passados perdidos? Com este desafio dar-lhe-ás um incentivo e nascerá neles a vontade de lutar à luz do dia para devolver ao reino a força que perdeu. Por outro lado, poderás arranjar para a tua filha um marido digno de mais tarde dirigir com ela os destinos deste reino.
O rei prometeu pensar no assunto. Quando as rainhas Mboa, Lela e pensala se retiraram, ficou algum tempo sentado. Os conselheiros foram-se também embora. As primeiras penumbras invadiram o salão. O Sol já descia e virava para a outra banda do hemisfério. Como era possível que o não tivessem avisado sobre o desaparecimento dos Passados? Era um direito sagrado cada um ter o seu. Desde sempre os seus ancestrais, através de leis sábias e justas, tinham procurado proteger cada um no seu direito de o possuir e guardá-lo, prevenindo-os dos perigos resultantes de um tratamento inadequado.
Cantadores e oradores, difundiram pelo reino, desde os tempos mais antigos, as palavras que guardavam histórias e lições para proveito de todos.
A via sugerida pelas mulheres tinha a vantagem de evitar perigos a que o reino poderia estar sujeito, no estado em que se encontrava. Vir lá de fora, de algum reino vizinho, um príncipe, um rei ou um nobre, junto de um monte riquezas, uma aliança a estabelecer pelo casamento, um passo curto para uma vassalagem a curto ou a médio prazo, ou até a anexação pura e simples. Nem precisava de consultar os conselheiros. Mandou imediatamente proceder ás escrituras necessárias para pôr em marcha as suas vontades.
Por decreto real, a todos quantos reunissem as condições exigidas assistia-lhes o direito de se apresentarem como candidatos à mão da princesa Makemaka. Na embala do rei realizar-se-iam as mais diversas provas, para avaliar as qualidades, a coragem, a dignidade, o valor dos candidatos. Um júri seria constituído pelos sábios do reino escolhidos entre os makota e presidido pelo rei e pelas rainha Mboa, Lela e Pensala. À princesa Makemaka caberia a última palavra. O soberano deu ordem para que, três a três, os arautos percorressem as estradas, picadas e caminhos, para levarem a notícia a todos os súbditos. Sem excepção. Quem não fosse portador do seu Passado seria excluído das provas.


ESTAMOS JUNTOS COM OS TRÊS ARAUTOS

Estamos Juntos tinha acabado de recolher água na cacimba, quando viu três homens a subir o carreiro para a casa dele.
Vestiam os trajos dos viajantes e pelo seu aspecto caminhavam há muitos dias. Depois dos cumprimentos, Estamos Juntos convidou-os a lavarem-se e ofereceu-lhes hospitalidade. Disseram que não podiam aceitar nada antes de cumprirem o mandado do rei. Sentaram-se então debaixo de uma mangueira. Convidativas, pendiam frutas dos ramos. Nem sequer olharam.
Um deles deu-lhe a notícia real, que a princesa ia casar e tudo o resto. Um outro perguntou:
- Achas-te com direito à mão da princesa?
- Sim – respondeu Estamos Juntos, sem perceber completamente o que estava a acontecer. As palavras do arauto ainda não tinham chegado lá bem dentro da sua cabeça.
Então, o terceiro arauto perguntou-lhe se ele tinha Passado.
Estamos Juntos ficou um bocado surpreendido com a pergunta mas logo se lembrou de que há muito tempo não lhe punha a vista em cima. Desde que o avô se tinha ido embora
Concebido pelos maiores ceramistas do reino e depois de submetido a rigorosos rituais purificados e consagrados, era entregue pelos sábios e kimbandas a cada chefe de família
Quando um dos membros da comunidade conquistava a sua independência, recebia um, depois de sagrado pela Terra, pela Água, pelo Fogo e pelo Ar.
Estamos Juntos disse que sim, que tinha o Passado lá dentro.
Os arautos olharam para ele em silêncio durante alguns momentos. O primeiro a falar perguntou-lhe como se chamava. Ele disse ‘’Estamos Juntos ”.
- Com quem vives?
Com Ninguém respondeu.
Ninguém era um papagaio que o avô lhe tinha dado, poucos dias antes de ir embora para nunca mais voltar. Foi ele mesmo quem lho deu com esse nome ao dizer “agora ficais sozinho e ninguém te vai ajudar. Por isso mesmo, este papagaio vai-se chamar Ninguém, depois verás”. O avô remeteu-se ao silêncio sobre aquele assunto, sem deixar de falar de outros, depois de dar duas chupadas no cachimbo, sacudindo a brasa, que devolveu á fogueira fazendo-o rolar na palma da mão.
Então os arautos disseram a Estamos Juntos “queremos ver o teu Passado” Estamos Juntos levantou-se, entrou em casa.
Ninguém estava no poleiro ao lado da porta, a coçar o bico com uma pata. Estamos Juntos procurou, procurou, procurou, nada. O Passado não aparecia. Quando saiu vinha de mãos a abanar.
Os arautos perguntaram-lhe:
-Não te lembras onde guardaste o Passado?
-Lembro-me, mas não está lá. Desapareceu.
- Procuraste bem?
- Procurei
Estamos Juntos voltou a procurar. Nada. Os arautos disseram que ficaram ali o tempo que fosse necessário, que não tinham pressa, podiam esperar. Ao fim de muitas buscas inúteis, desistiram Disseram os arautos:
- Estás com um problema. Tens um prazo até ao casamento da princesa para descobrir o que aconteceu ao teu Passado.
E prosseguiram viagem. Se chegaram preocupados, mais preocupados partiram. A situação estava a torna-se muito grave. Alongo da sua missão tinha encontrado muitos casos parecidos dos com o de Estamos Juntos. Não sabiam ainda a que atribuir as verdadeiras causas do desaparecimento dos Passados. Havia a hipótese que apontava para o roubo puro e simples. Mas outras cintilavam suspeitas, nas cabeças em procura. Não era de excluir serem as próprias vítimas as causadoras do desaparecimento dos Passado que, em certas épocas de crise, aumentavam, em muito, o seu valor. Muita gente tentava adquirir vários, para capturar algum ou mais poder, e sempre aparecia quem não se importava de vender o seu. Poder efémeros porque não se pode, indefinidamente, dominar o que é dos outros…


O CAOS NOS QUIMBOS

Muitos dias se passaram desde que o rei mandou os arautos espalharem a notícia de que tinha chegado a hora de casar Makemaka. De todos os cantos do reino recebia informações que anunciavam a partida de inúmeras caravanas rumo à imbala real. Os mensageiros vinham dar testemunho do grande entusiasmo por todo o reino em relação ao casamento da princesa: uns, porque queriam competir na obtenção das suas boas graças, outros, na mira dos festejos que se adivinhavam faustosos.
Porém, algo estranho, muito estranho mesmo, estava a acontecer. Os dias passavam, as pessoas não chegavam. Às que já lá estavam, mercadores de ocasião, peregrinos, viajantes, gente que esperava que se fizesse justiça para os casos que apresentavam, ou doentes que procuravam a cura junto dos melhores quimbandas do reino, pouca gente se juntava, que tivesse directamente a ver com o casamento real.
O rei estava muito preocupado. Tudo apontava para a existência de um mistério: os viajantes desapareciam no percurso para os terreiros do rei. O soberano, depois de ouvir os conselheiros, meditava na solução a adoptar. Precisava de arranjar uma forma de acabar com aquilo.
Estava ele contemplativo, sentado numa rocha sobranceira ao Grande Rio que corria junto aos muros de pedra da embala, quando se aproximou a rainha Mboa, com o seu passo silencioso:
-Meu senhor, grandes preocupações te sobrecarregam o olhar, a cor fugiu da tua testa. Posso ser-te útil de alguma maneira?
- Ah minha rainha, o plano que sugeriste revela-se ainda mais problemático do que a nossa situação.
- Eu sei, e já previa que isso acontecesse. Se alguém anda a roubar os Passados, não podia deixar de aproveitar esta oportunidade para deitar a mão a mais alguns. Esta pode ser a altura de nos aproveitarmos de algum erro que cometa, para acabarmos com os seus crimes.
- Minha rainha, não fosse a tua insistência, a convicção que transmites, não mais pensaria nesta história dos Passados, mas vejo-me obrigado a concordar contigo. Coisas extraordinárias se estão a passar! – Disse o rei contemplando o Grande rio na sua marcha líquida. Depois de uma pausa em que mergulhou profundamente no olhar sereno da mulher, reflectiu, quase que para ele:
-- Mas de que forma agir perante alguém que não se mostra., se nem sequer sabemos o que realmente se passa?
- Meu rei, pode ser que alguém saiba de alguma coisa e não o queira dizer por medo. Talvez um pequeno incentivo da tua parte levem as pessoas a vencerem os receios e a contarem alguém que ajude a desvendar o mistério…
- Muito bem, o que sugeres?
- Sugiro-te que ofereças uma recompensa a quem trouxer informações sobre o que está a acontecer. Dá-lhes qualquer coisa, fuba, mandioca, quissângua, panos, peles, etc. Se for de comer, de beber e de vestir, muita gente virá tentar…
-Não me custa fazê-lo, embora as finanças não estejam nas melhores condições.
- Majestade, as tuas reservas são inacabáveis.
- Não acho, senhora, não acho, mas que mais posso fazer senão tactear no escuro?
O rei mandou proclamar que ofereceria uma recompensa a todo aquele que reunisse informações capazes de ajudar a descobrir o que estava a acontecer no reino e, principalmente, tudo quanto estivesse relacionado com o desaparecimento dos Passados.
Oferecer recompensas em tempo de crise, para as pessoas revelarem coisas que ajudem a saber o que não se sabe, pode despertar, em todo o mundo, uma verdadeira paixão pelas alvíssaras, mais que pela verdade mesma das coisas. O rei sabia disso, mas pensou que talvez valesse a pena correr alguns riscos. Não se admirou, quando as pessoas começaram a aparecer em peso na Casa Real, para trocar informações por fuba, feijões, mandioca, batata-doce, peixe, carne, massango, milho, massambala, que apesar de comida de passarinho, jeito também fazia, para quem apreciava, e outros víveres. Afinal, tratava-se de uma boa saída para a situação crítica de muitos, que começavam a desesperar. Sem trabalho, ou porque a seca devastara os campos e secara as represas ou porque as ameaças dos inimigos e os seus ataques não permitiam o desempenho das tarefas produtivas, havia quem se munisse de algumas informações, um saco e pronto, dava para tapar os pequenos buracos da vida. Gerou-se rapidamente um verdadeiro caos. O Grande Quimbo transformou-se num gigantesco mercado onde a troco de duas ou três denúncias se poderia adquiri peixe, fuba, milho, feijão. Era possível obter uma casa e seu recheio, denunciando uma família inteira de vizinhos que entretanto ficavam presos para averiguações, ou tinham de arrumar as embambas noutro sítio. Ou desapareciam da circulação.
Casos havia também de moradores de casas cobiçadas que eram subitamente desalojados por via de uma denúncia entregue a um colaborador do rei, podia até ser o guarda do portão, que de imediato colocava o denunciante lá morado, graças a uma combina engendrada num ápice, e se possível apoiada por competente ameaça. Não havia tempo a perder.
Era comum os negociadores cruzarem-se em diálogos curtos e eficientes:
- Já trataste da nossa combina?
- Estou a dar o expediente. Mais uns dias e resolve-se.
- Vê se te avias.
O rei mantinha-se na ignorância, o que sempre acontece até um dia.
À custa do rei, muita gente comia e vivia assim, denunciantes e denunciados (classificação com a propriedade associativa, porque não raro era acontecer os denunciantes virarem denunciados, como uma vela de dongo vira de repente para o outro lado graças a uma mudança de vento). O soberano andava verdadeiramente preocupado com o estado de espírito que aqueles seus súbditos revelavam, em que já não havia respeito por ninguém, a começar por cada um por si mesmo. Como uma moléstia que o vento transporta no bojo dos seus transmissores, estendia-se pelo reino o ambiente próprio de uma sociedade desavinda, onde todo o mundo só era bom para todo o mundo,, porque era bom para si, o que seria bastante razoável, não fosse o caso de, na maior parte das vezes, a bondade para si não ser senão a máscara da mais implacável perversidade.
Amantes em discórdia aproveitavam a oportunidade para descarregarem os seus odiados sentimentos reciprocamente. As mulheres fartas dos maridos, idem, estes vice-versa. Havia filhos que denunciavam os pais enquanto estendiam as mãos para os sacos de farinha ou para uma boa cabeça de pungo à espera do respectivo caldo a condizer. Todavia, a falta de amor filial, fraternal e outros, era apenas mais um esquema engendrado mentas mentes imaginosas dos que logo transformavam o assunto do rei em negócio mais rentável e constante. Porque, na realidade, muito amor filial, fraternal e outros que havia é que determinava a elaboração esquemática. Que mais fazer? Na maioria das vezes, rapidamente os acusados eram postos em liberdade por não se lhes reconhecer culpabilidade. À saída dos calabouços recebiam um cesto com as mais diversas vitualhas, uma forma de os compensar dos incómodos causados pela máquina da justiça. Aí, era a vez dos acusadores irem para o calabouço e assim sucessivamente. Formaram-se até associações deste tipo, que iam do tio ao sobrinho, passando por avós e netos. Os conselhos de administração destas empresas tinham sede segura na própria casa do rei, por enquanto alheio a tudo isto. Em suma: o estômago mandava mais do que o coração e este mais do que a cabeça. As famílias desmembravam-se, desta maneira, frente aos olhos impotentes do rei, a confirmar de momento a momento que a maior parte das informações que lhe traziam eram pura inutilidades e invenções. Sementes da discórdia.
O rei, quando abriu os olhos e deu conta do descalabro, tentou acabar com aquilo de uma maneira simples: mandou deter sem direito a recompensa, fosse em que circunstância fosse, todos aqueles que acusassem outros, sem fundamento. Os detidos eram então obrigados a apanhar sacos de sumaúma em dias de ventania.

In “Tala Mugongo”, Spleen Edições, 1995

A PRECE DOS MAL AMADOS - CAPÍTULO OITO


O REGRESSO IMPRÓDIGO

Onyoka ili-po kaihetekwa n’otymuti· (provérbio nyaneka)


A aurora tentava timidamente romper a neblina espessa que envolvia a aldeia. Um galo cantou, despertador de todos os outros, a indicar o novo dia que raiava. Os primeiros a acordar, anicharam-se nos cobertores que os agasalhavam, lutando contra a vontade de assim permanecerem mais um pouco. Logo as mulheres se levantariam para reavivar os fogos onde poriam a água a ferver e aqueceriam a comida da véspera. O chilrear da passarada nas árvores, em breve confirmaria que o dia efectivamente se despia das vestes nocturnas, afastando, com o seu bafo cálido, o nevoeiro que ainda pairava teimoso.

De repente, o furioso ladrar dos cães não deixou dúvidas de que gente estranha e numerosa se aproximava, e os que pensavam saltar dos catres onde dormiram para as lides da agricultura, encolheram-se porque bom presságio não augurava, ninguém chega sem ser anunciado tão cedo pela manhã. A confirmar os seus temores, logo ouviram um burburinho de vozes, ordens e passos rápidos em movimentação. Os cães mais ousados que ousaram arreganhar para os intrusos, foram ponteados ou apedrejados, partindo a ganir para longe.

- Meu avô, o senhor ainda vive?

Ao reconhecerem a voz trovejante de Tomás, as pessoas sustiveram a respiração, como se assim conseguissem esconjurar para distante os malefícios descendidos sem aviso, num pesadelo de novo revivido. Desta vez não escapariam, tinham sido apanhadas que nem pássaros no visgo, a guerra fora esquecida através dos anúncios constantes da paz e das eleições, relaxaram os postos de aviso e agora pagariam caro pelo desleixo, temiam anichadas em suas casas, no silêncio dos fogos apagados e temores sem fim.

- Meu avô, estamos em paz, pode aparecer! - Atirou outra vez aos ares, com uma gargalhada, logo ecoada pelo resto da tropa que com ele chegara.

De sua casa surgiu Nehone, tentando compor a carapinha. O facto de nenhum tiro ter sido disparado nem porta qualquer arrombada, criara-lhe ousadia suficiente para fazer face ao perigo.

-Se voltaste para nos matar, toma cuidado porque a tua irmã está connosco.

Tomás não percebeu o que o seu tio-avô quis dizer.

-Irmã, que irmã? Esse velho pirou de vez?

- Não precisa ter medo, estamos em paz, vim só visitar a minha aldeia e saber se o meu avô, o grande soba Juba de Leão ainda ruge. – Disse, entre novas gargalhadas.

- Se vens para nos atacar, toma cuidado a Nazamba está connosco.

Tomás ficou sem palavra. Por um longo momento a sua mente ficou apagada, a mais vasta e inesperada escuridão toldou-lhe a visão e o cérebro. Quando voltou a si, o velho já se encontrava diante dele, erecto e mais seguro, depois de ter percebido que o sobrinho neto fraquejara ao ouvir o nome da irmã. Certamente que nunca esperara desenterrá-la dos confins do ódio antigo que a proscrição do avô causara.

- A minha irmã, a Nazamba está cá, voltou? – Perguntou, inseguro.

Já te baixou a arrogância toda, não é? Espera e logo verás...

- Sim voltou, mas vive em Luanda. Veio nos visitar, com o marido dela, o teu primo Nataniel.

Duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelos olhos, em sulcos que já denotavam uma velhice precoce, sem se aperceber que lacrimejava. Os companheiros fixavam-no, atónitos, o seu grande e indómito chefe, o general Tomás, codinome “Sem Medo”, chorava ao pronunciar do nome de uma mulher, sua irmã. Incomodados, recuaram, deixando-os sós. Alguns deles, os que o acompanhavam há mais tempo, sabiam que esta era a aldeia do soba Juba de Leão, seu avô, a quem ele tentara matar pelo menos duas vezes, numa vingança nunca muito bem explicada. Quando aqueles mais íntimos procuraram saber o porquê de tal acto, encontraram sempre uma desculpa enviesada, um motivo escuso, quando não um silêncio contumaz. Talvez ali viessem verdadeiramente a saber o que se passara, que mola impulsionara, sem causa justificada, um neto a desejar acabar com o avô.

Se estiveres a gozar comigo, juro que te mato.

- Não estás a brincar comigo, velho caduco! – Rugiu, agressivo.

- O meu neto deveria saber que não é assim que se fala a um mais velho.

Também foste um deles, agora queres respeito?

- Mais velho?... – Perguntou vagamente

Nehone olhou-o profundo nos olhos e leu o medo que Tomás aparentava não ter, ou querer mostrar. Apanhado em despreparo pelo coice brutal da afirmação, o seu castelo ameaçava ruir, tão frágeis eram os caboucos argamassados com o lodo emocional reprimido, e o ódio.

- Deixa-te lá dessas estórias seu fingido e responde à minha pergunta. – Respondeu Tomás, no mesmo tom, propositadamente desrespeitoso.

- Não estou a fingir nada, a tua irmã está cá e daqui a pouco vais falar com ela.

- Se tudo o que me contas é mentira, nem a paz te salva, vais comigo, podes ter a certeza.

Nehone sorriu. Olhou para a arma do neto, que pronto a pôs a tiracolo, apanhado na surpresa curva do olhar do velho.

- Vão para o jango e sentem-se lá, vou falar com o teu avô e com a tua irmã e cunhado. Não temos comida para todos os que vieram contigo, já agora.

- Não é preciso, vai, que vou para o jango. – Disse, numa voz ansiosa.

Se esse velho me está a aldrabar, juro que não viverá.

Dirigiu-se, com mais uns outros quatro responsáveis para o jango, atento e desconfiado, não era agora que as hostilidades pareciam ter acabado que iria cair num logro. Uma coisa era o palavreado dos políticos nas cidades e nas conferências para o consumo público, outra era o que se desenvolvia no terreno. Ninguém lhe ordenara a desmobilização e a entrega de armas ou qualquer coisa parecida. As ordens eram para se manterem nos seus lugares e vigilantes, e se fossem provocados, dar resposta imediata e de valor.

Toma cuidado, não vá ser uma armadilha... melhor será colocar mais vigias.

Nunca deveriam esquecer que a sua luta havia obrigado os cubanos a sair, eles que representavam a maior força anticomunista em África, o exército que os combatia encontrava-se desmoralizado e as eleições já estavam ganhas, nunca lhes roubariam essa certeza. O governo, após dezoito anos de má governação, estava liquidado, ninguém de verdadeiro juízo iria eleger os que abusivamente reinaram todo esse tempo sem mandato do povo. Calcorreara o país e vira e sentira que nas políticas de Luanda imperavam o nepotismo, o tribalismo e o racismo, em contradição com a gasta verborreia de Cabinda ao Cunene um só povo uma só nação, abaixo isto, abaixo aquilo, lacaios para aqui, fantoches para ali. Na sua organização, não se enfiara essa carapuça. Lacaios, a havê-los, seria dos dois lados, com os cubanos corridos do país, com os soviéticos a desmembrarem-se, os donos do poder haviam perdido os apoios e os suportes, estavam entregues à sua sorte. Eles iriam mostrar o que era o verdadeiro poder popular, desabrochado e colhido no âmago profundo de Angola, nunca mais os iriam aldrabar.

- Coloquem mais vigias na periferia da aldeia e não deixem ninguém sair. – Ordenou para um dos responsáveis da tropa que o acompanhara. – E uma outra coisa, tenho um assunto de família a resolver e peço que me deixem sozinho, esperem debaixo daquela árvore, vou mandar milho e água.

Momentos depois viu uma mulher, enfiada numa camisa e calças desalinhavadas, cabelo por pentear e seguida de um homem, correr para si. O coração pulou-lhe desordenadamente, tentou reconhecer a irmã, figura apagada, para não dizer enterrada, nas suas mais profundas recordações.

- Meu irmão, ai meu irmão, Tomás, Tomás... – gritava Nazamba, seguida de Nataniel.

De longe, pela porta entreaberta da choça, Juba de Leão, observava, atento e excitado. Não desejava perder um gesto nem a emoção do encontro dos dois netos. A população masculina mantinha-se afastada, receosa da tropa que, de maneira discreta mas visível, se mantinha à distância. As mães, mantinham os filhos em casa e muitas conseguiram escapulir-se para a mata circundante.

Quando Nehone viu Nazamba dirigir-se ao irmão, fez um compasso de espera e depois foi ter com eles, desejoso de assistir de perto ao reencontro. Parou ao lado de Nataniel, para quem olhou e sorriu.

Tomás manteve-se de pé e estático, preso pela emoção e para não fraquejar. Tinha que manter a disciplina própria perante seus homens, não deveria deixar-se levar pelas emoções. Quando reconheceu os traços familiares, avançou para ela e abraçaram-se num cerrado amplexo. Escondeu a sua cara no ombro da irmã para que não se notasse que o coração vencera e que as lágrimas escorriam em catadupa. Silenciosos, mantiveram-se abraçados por longo tempo.

- Minha irmã, deixa-me recompor, - ciciou-lhe, por fim, ao ouvido. – A tropa não me pode ver assim.

Nazamba apertou-o mais contra si, sentindo-lhe a angústia. Compreendia o seu pedido e a sua ansiedade. Achou que teria muitas oportunidades de o abraçar e de se falarem, não podia permitir que os soldados notassem os sentimentos e emoções do irmão.

- Recompõe-te, estão longe. Como eu esperei por este momento. – Disse, começando lentamente a desenvencilhar-se do abraço.

Tomás, por sua vez, largou-a e olharam-se face a face, sorridentes. Nataniel, que mantivera uma distância respeitosa, a passos lentos caminhou para eles, seguido de Nehone, esperando que Tomás se sentisse mais refeito.

- Tomás, este é o Nataniel, meu marido e também nosso primo. – Disse Nazamba.

- Muito prazer, cunhado. De facto não me lembrava de ti, és o filho de...

- O meu pai é o teu tio Epalanga e a minha mãe a D. Zeferina...

- Assim somos primos como irmãos!... – Disse Tomás, tentando vislumbrar o nível de parentesco.

- Não, somos primos em segundo grau. - Respondeu Nazamba.

- Mas isso agora não interessa. – Disse Nataniel. Sê bem-vindo entre a família, vem à nossa casa para mandarmos saber quando o avô te poderá receber.

Tomás sentiu um baque no coração, nunca entrevira que a irmã estivesse de volta e ainda por cima casada com um primo, muito menos a possibilidade de fazer face ao avô em posição de fragilidade. Viera para o amedrontar, para se vingar, para ouvi-lo implorar nem que fosse com o olhar, nunca para ter uma conversa amena ou controlada pelos acontecimentos que encontrara. Todavia a presença de Nazamba também lhe dava força, pois sabia que o sentimento de rejeição lhes era comum, o velho soba teria que os confrontar a ambos.

- Vão para a casa de Nataniel, eu vou falar com o vosso avô, que certamente já vos deve ter visto. – Sentenciou Nehone.

- Pode tranquilizar toda a gente. – Disse Nazamba, agarrando os dois homens pelos braços e conduzindo-os para a casa que lhes fora construída.

- Vivem aqui? – Indagou Tomás, mais para fazer conversa.

- Não, viemos visitar o nosso avô pela primeira vez após o meu regresso. Antes não nos era possível – respondeu-lhe a irmã.

Tomás sobressaltou-se, e Nazamba olhou para ele preocupada. Só depois é que deu conta do conteúdo da afirmação e percebeu que o estava involuntariamente a culpar pelo facto. Sorriu-lhe e apertou-lhe o braço, cerrando-o mais a si.

- E o meu cunhado, o que faz? – Perguntou Tomás a Nataniel.

- Sou médico. Formei-me em Cuba e trabalho no Hospital Militar.

- E a minha irmã?...

- Sou formada em direito comercial.

- Só eu é que não sou nada... – disse Tomás com mágoa.

- O que é isso? Não és nada? Não és general?

- O que é isso, senão um atestado, um diploma para matar?

- Tomás, não digas isso. A paz está aí e serás integrado no exército comum que será formado. – Respondeu-lhe Nazamba.

- Acreditas?... – Perguntou-lhe Tomás.

- Porque não deixamos essa conversa para mais tarde? É hora de matabichar. – Protestou Nataniel, aborrecido com o rumo da conversa.

- Não olhes para a casa. – Pediu Nazamba.

- Casa? Há anos que não sei o que é uma casa, para mim é um palácio. – Respondeu Tomás com uma gargalhada franca.

- Melhor ainda, assim logo te habituarás aos confortos da paz e da tranquilidade.

Entraram e sentaram-se à volta da mesa. Nazamba chamou pelos moleques e mandou-lhes acender o fogo na cubata ao lado que entretanto tinham mandado erguer para servir de cozinha, com um fogão antigo a carvão

- O que queres comer?

- Para ser franco, queria um pirão com galinha.

- Mas isso vai demorar. – Disse Nazamba.

- Não faz mal, eu espero. Achas que vou querer ovos estrelados? – Riu Tomás.

- Tens razão, não leva assim tanto tempo a preparar.

Deu as instruções aos miúdos, recomenda-lhes pressa, o que não era necessário por estarem aterrorizados pela presença de Tomás e da tropa, assim, quanto mais rápido comessem, mais rápido dali se iriam.

- Mana, dá-me um copo de água, estou com muita sede.

Nazamba olhou para ele e desatou a chorar, em soluços. Sobressaltados, entreolharam-se sem saber como reagir.

- O que foi, Nazamba? – Perguntou-lhe por fim Tomás.

- É a primeira vez que me chamam mana, em décadas. - Respondeu, a rir e a tentar controlar o choro.

- Então essa água vem ou não vem? – Perguntou Tomás, para que a emoção não tomasse conta de si.

- Só que não está gelada, mas está fresca. – Afirmou Nazamba, um pouco mais calma.

- Gelada? - Tomás riu novamente. – Estás a esquecer que vivo no mato e não na cidade?

- Desculpa Tomás, não faço por querer, é o hábito.

- É o que dá viver nos confortos das urbes! – Disse Nataniel, tentando humorar.

- E o nosso avô, está mesmo bem? Ouvi por aí muitas coisas.

- Está. – Respondeu Nataniel. - Claro que velho, mas sempre o famoso Juba de Leão.

- Acham que vai ter medo de me ver?

Oh meu irmão, tira esses desejos da tua alma!

- Espero que não, acho que não. – Respondeu Nazamba.

- Pois eu espero que sim, que sinta um terror horrível ao ver-me. – Afirmou Tomás, com violência.

Nataniel e Nazamba olharam para ele e não souberam o que dizer, não o conheciam. Qualquer palavra ou frase imprópria poderia levar o reencontro para rumos não desejados. Talvez fosse bom o velho sentir esse medo terrível, como forma de se manter a situação equilibrada.

- Meu irmão, só tu sabes os caminhos por que andaste e o que te custou a caminhada, mas o ódio nunca resolveu nada. Olha que para mim, também não foi fácil.

Por uns largos momentos Tomás concentrou o seu olhar sobre a irmã que, meio angustiada, tentava ler o que neles pudesse ser visível. Por fim desistiu, da alma dele nada transparecia.

- E o nosso pai? O que é feito do nosso pai? Sabes que o capim e o mato acabaram por comer tudo o que era dele?

Nazamba teve receio de responder, não o queria enfurecer ou amargurar ainda mais. Não lhe poderia contar que o velho morrera atormentado e alcoolizado e que ela muito contribuíra para isso.

- O nosso pai faleceu há muitos anos e foi bom que nunca tivesse sabido que o que lhe pertencia fora destruído, pelo homem e pela natureza.

Tomás não fez qualquer comentário, talvez se encontrasse por ora satisfeito com a resposta. A imagem que perdurara do progenitor era a de despedida em Luanda, um abraço forte e fugidio e ele a deitar pela rua a correr para esconder as lágrimas e não gritar o seu ódio, ódio pelo avô e por tudo o que rápida e incompreensivelmente se desenrolava à sua volta. Eu fico pai, foi o que lhe dissera, não em gesto de bravata ou independência, mas sim o mastigar e ruminar inconsciente da futura vingança e com ela poder um dia domar ou apagar para sempre o vulcão que Juba de Leão abrira. Os do sul, como afirmara ao pai, iriam acolhê-lo, falava a sua língua e neles logo viu que o seu ódio podia crescer, indomado e cheio de objectivos. Não precisou de rumo, mas sim de caminhos, que foram inúmeros, a fome da morte que fuzil sente é farta, basta o coração premir o gatilho e logo o estampido reverbera pelo inconsciente em alegria do dever cumprido. Foram sendas tortuosas e inesperadas, talhadas pelo capricho, que o levaram à mãe e, agora, à irmã.

- Meu cunhado, não fumas?

- Não, por acaso não, mas posso mandar arranjar tabaco.

- Agradeço, eu sem cigarro passo mal, até já fumei barba de milho, aliás quase que só fumava barba de milho.

- Barba de milho? – Perguntou Nazamba, admirada e a rir.

- Barba de milho ou qualquer outra porcaria que servisse, até mesmo só folhas secas enroladas, o pior era depois a sede.

- E porque não paravas de fumar?

- Parar de fumar? Minha irmã, tu me surpreendes, o mato é a nossa prisão, toda a minha vida tem sido uma prisão... mas não desejo falar disso agora. Esse mata-bicho vem ou não vem? E olha que não quero água a acompanhar, manda vir bebida que empurra o pirão se faz favor.

- Não te preocupes, o Nataniel tem uma garrafa de vinho que até parece que estava reservada para ti. – Disse Nazamba, já mais tranquilizada.

- Esta bem, obrigada, mas esse velho tem que servir cerveja de milho, a minha tropa precisa de beber.

- Queres embebedar a tropa? – Perguntou Nazamba, cenho franzido.

- Não foi isso o que disse ou sugeri, é gente bruta e habituada a todo o tipo de agruras, precisa de descansar um pouco, comer e beber. Fica contente e quieta.

Ouviram-se uns passos e um dos moleques apareceu a anunciar que a comida estava pronta, se a podiam trazer. Nazamba colocou os pratos na mesa e foi buscar a garrafa de vinho ao armário, entregando-a a Nataniel para a abrir. Com carinho, serviu o irmão e o marido, que a olhou a sorrir.

- Nada como a presença do Tomás para me servires! – Disse, em galhofa.

- A minha irmã não te serve a comida? – Perguntou Tomás admirado.

- Não, a pré-história já passou há milhões de anos. - Respondeu Naza

- O que queres dizer com isso? - Insistiu Tomás.

- Quero dizer que as mulheres têm direitos iguais, não as há a lutar ao vosso lado?

- Claro que há, mas elas é que apanham a lenha e cozinham...

- Então, vai o vinho ou não? – Perguntou Nataniel, para mudar o fio à conversa.

- Serve, cunhado. Vamos encher as barrigas para podermos falar bem com o nosso avô,

já irei melhor disposto.

- Eu só vou petiscar, não estou habituada a comer pirão pela manhã. – Disse Nazamba.

Os dois homens riram e concentraram-se nos pratos cheios. Por uns longos momentos nada mais se ouviu a não ser o retinir dos talheres nos pratos e o virar do vinho nos copos. Encostada à cómoda, Nazamba observava-os, agora os dois homens da sua vida. O facto de Tomás se encontrar ali diante de si ainda não penetrara como um acontecimento real, mais lhe parecia um sonho que a deixava simultaneamente feliz e preocupada, atendendo a que qualquer momento se esvanecesse.

- Tomás, sabes da nossa mãe? - Atirou Nazamba de chofre.

Sem levantar os olhos, Tomás retesou o corpo e sorveu o vinho. Limpou a boca com as costas da mão e pelos gestos de nervosismo, deu a entender que a pergunta era indesejável. Nazamba de imediato se postou a seu lado, tensa, certa de que ele tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Balanta. Farejou a presa, não se lhe escaparia incólume em evasivas.

- Tomás, fiz-te uma pergunta, por favor responde-me. – Insistiu, ríspida.

- Posso entrar? – Ouviu-se a voz de Nehone, enquanto empurrava a porta semi aberta.

- Entre avô, entre. – Respondeu Nataniel levantando-se e oferecendo-lhe a cadeira. –Sente-se aqui, eu já comi. O avô quer comer?

- Obrigado meus filhos, comer não quero, petiscar talvez ...mas sem vinho.

- Sente-se aqui que eu já o sirvo. – Disse Nazamba.

- Só um pouco, minha neta, só um pouco. O vosso avô Juba de Leão vai receber-vos em breve, não o façam zangar. – Disse, olhando para Tomás.

Estás muito preocupado com isso, o que vai ele fazer, correr comigo e com a tropa?

- Não se preocupe, saberei comportar-me. – Respondeu secamente Tomás.

-Temos muito que conversar, meu neto. Muito, mas só mais tarde, vais ficar até tudo se resol

- Tudo o quê?´

- Tudo! Depois falamos. - Disse Nehone sem querer ser misterioso.

Nataniel e Nazamba entreolharam-se, o velho voltava à carga, sentiram-se incomodados.

- Coma, coma, senão arrefece. – Disse Nazamba, apontando para o prato.

- Já falaram muito? – Perguntou Nehone.

- Nem por isso, ainda somos meios desconhecidos. – Respondeu Nataniel.

- E o que é que falou com o avô Juba de Leão? – Perguntou Nazamba.

- Então agora os mais velhos já prestam contas aos mais novos?

- Então nunca ouviu dizer que os mais velhos também dançam ao batuque dos mais

novos? – Não se conteve Tomás.

- Dançam sim senhor, mas se notares bem vais ver que os passos não são os mesmos, assim como deves saber que os mais novos aprenderam a tocar a partir dos mais velhos.

- Assim é que se fala, meu avô. – Disse Nazamba a brincar, para cortar a latente tensão.

- O soba está preocupado, pensa que Tomás veio para se vingar e diz não estar seguro dessa paz quando mesmo o neto dele entra arrogantemente por aqui, e ainda por cima com a tropa.

Raio do velho, deve estar maluco!

- Mas ele queria que eu viesse sozinho? Há dias que estou nas redondezas, a observar, a ver quem entra e quem sai. Acham que vinha só assim? Os que assinaram a paz não estão aqui connosco, eles estão lá nas cidades, nós é que morremos se não tivermos cuidados.

- E não me tinhas visto, Tomás? – Perguntou Nazamba.

- Não sou eu que faço de vigia e de busca, minha irmã, é a tropa e não tinha razão para notar qualquer um em especial, a não ser que estivesse fardado. Mulatos há por todo o lado, nuns sítios mais, noutros menos.

- Quer dizer, se tivesses atacado ter-nos-ias morto a todos!

- Não tinha razões para ser eu a quebrar o cessar-fogo. Vim cá só para meter medo ao velho Juba de Leão, nosso avô poderoso que correu connosco daqui, não esqueças.

- Vocês os homens só sabem fazer guerra, se parissem os filhos talvez assim não acontecesse. – Disse Nazamba com amargura na voz.

Onde é que já se viu isso, homem a parir filho?

- Mas que ideia, só podia vir mesmo da cabeça de uma mulher! – Disse Tomás a rir.

- E o que tens tu contra as mulheres, a tua mãe não é uma?

- Nada minha irmã, não tenho nada, mas se Deus quisesse os homens a parir, assim teria sido e não é. Quem tem os filhos são vocês.

- Também, de quem anda por aí a fazer a vida dele a matar!

- Nazamba!... – Sibilou o marido.

Tomás preferiu não dar importância ao remoque, desejava não confrontar de modo algum a irmã e, aliás, o que afirmara era a verdade. Toda a sua existência tinha sido dedicada à destruição, talvez agora a paz lhe trouxesse outro modo de vida, nunca era tarde.

- Não dês importância. – Disse Tomás, dirigindo-se a Nataniel.

- A juventude tem que estar sempre a discutir... – suspirou Nehone, acabando de comer. – Tragam-me um copo de água.

Nazamba dirigiu-se ao moringue e encheu uma pequena jarra, levando-a para a mesa onde a poisou após ter servido o velho.

- Mas o avô não acha que tenho razão? – Perguntou Nazamba.

- Mas menina, isso é um disparate, os homens nunca poderão ter filhos. – Respondeu.

- Todos sabemos, mas se pudessem...

- Nazamba, - disse-lhe Nataniel – essa não é a questão, o que estão a tentar dizer-te é que a partir da impossibilidade real, não pode haver especulação intelectual.

- Está bem, já me dei conta de onde me encontro.

- A minha neta está a ofender os seus?

- Não avô, unicamente a reconhecer que estou noutra onda, como dizemos lá na cidade.

- Noutra onda, é assim que dizem? Então qual é a nossa onda, minha neta?

- Oh avô, não ligue. É só uma maneira de falar, de dizer que a forma de pensar sobre isto ou aquilo não é a melhor.

- E eu a julgar que já sabia tudo, hoje aprendi mais uma coisa... – riu, o velho.

- Pois é, as pessoas ao envelhecerem esquecem o que foram e o que fizeram, por isso aprende-se até morrer. – Disse, Nazamba.

- Será que estou a perceber a minha neta um pouco triste?

- De facto, perguntei ao Tomás sobre a nossa mãe e ele fugiu à questão, estou certa de que sabe alguma coisa.

Alto aí, isto é interessante, muito interessante mesmo.

- É verdade, Tomás? – Perguntou Nehone.

Não é da tua conta, porque queres saber?

- Não é hora de falar desses assuntos... – respondeu secamente.

- Está a ver avô? Ele sabe sobre a nossa mãe.

Não te vou deixar fugir, não!

- É verdade, Tomás? – Insistiu Nehone, levantando-se.

- Primeiro temos que falar com o velho, só depois direi o que sei.

- Mas está viva? – Perguntou Nazamba com a voz embarg

- Sim, está viva e de saúde. – Respondeu, para tranquilizar a irmã.

- Não quero saber mais nada, meu irmão! – Disse, atirando-se ao seu pescoço, o que o fez quase tombar da cadeira.

Todos se entreolharam em alegria. O velho cofiava a barba, ganhara mais uma aliada. Nataniel apertava a mão ao cunhado, enquanto que com a outra afagava-lhe o ombro.

Será que este meu neto não me estará a mentir?

- Mas como sabes tu que ela está viva e de saúde? – Indagou Nehone.

- Porque fui eu que a raptei quando ela foi uma vez ao rio. Há muito que esperava essa oportunidade, só não queria é que soubessem que tinha sido eu. Ela está bem e de saúde e preferiu ficar connosco, dizia que mais valia estar com o filho e levar aquela vida errante e de privações, do que viver junto a quem lhe tirara os filhos e o marido. A nossa mãe nunca esqueceu, só temo é que vá morrer de alegria quando souber que a Nazamba também está cá.

- Ai Tomás, leva-me lá, já hoje, já agora! – Implorou Nazamba.

- Não, não pode ser hoje. Primeiro temos que falar com o nosso avô e depois ela tem que ser avisada antes, pode morrer de emoção, não está jovem, com todo aquele sofrimento.

- E está longe? – Quis saber Nehone.

- Não lhe posso dar essa informação, é militar, mas vou mandar ainda hoje avisar, prometo-te minha irmã. E quando chegar a altura, vou mandar buscá-la ou vou eu mesmo fazê-lo. Quando o exército souber que me encontro na aldeia são capazes de mandar tropas, eu devia estar no meu acantonamento e não aqui, por isso seria bom que o avô Juba de Leão desse ordens para ninguém falar, pelo menos pelos próximos três dias.

- Logo se verá, mais uma razão para irmos já ter com ele. Fiquem aqui, que vem cá alguém buscar-vos em breve. – Disse Nehone retirando-se a sorrir porque nada contaria a Juba de Leão, ele que ouvisse directamente da boca dos netos as verdades.

- E o que vamos fazer com a nossa mãe, Tomás?

- Acho que já sofreu muito e deveria ir com vocês para Luanda. Não merece mais continuar aqui no mato, e muito menos agora que encontrou de novo os filhos.

Nazamba olhou para Nataniel, que se acercou e abraçou-a, passando-lhe a mão pelo ombro.

- As palavras de Tomás são acertadas, nunca poderíamos fazer outra coisa e, aliás, esse filho que tens na barriga vai precisar de uma avó para cuidar dele e ensinar-lhe os costumes nossos.

- Estás grávida? – Levantou-se Tomás de um pulo.

- Só essa tua cabeça revoltada é que ainda não deu por ela…

Tomás abraçou-se à irmã e ao cunhado e, mais uma vez, não soube ou não quis conter as lágrimas.

- Hoje é certamente o dia mais feliz da minha vida!... – Balbuciou.

- Ainda bem, assim porta-te como deves na presença do nosso avô, tudo isso é passado. – Pediu Nazamba.

- Sim, é passado mas não deve acontecer outra vez, e é o que acontecerá se esquecermos. Poderei até um dia perdoar ao meu avô, mas esquecer toda esta tragédia, nunca o farei. Temos que ter memória, não é, Nataniel?

- Colocas-me numa situação difícil, concordo que temos que ter memória mas acho que também devemos saber analisar os momentos, se não cairemos sempre nos mesmos erros, por saírem sempre das mesmas emoções desconformadas.

- Tudo isso parece muito bonito meu cunhado, mas os gritos que querem saltar do meu coração são reais. Nunca estudei muito, só quando fui fazer o treino militar em Marrocos e mais tarde no Zaíre, mas sempre aprendi qualquer coisa e sei o que vejo e o que sinto, sei o que devo ou não devo fazer, não virei bicho selvagem, mesmo no meio desta selvajaria toda que é a guerra.

- Sei do que estás a falar porque também participei e, como médico tive muitas dúvidas, mas torna-se-me difícil sentir as causas do sofrimento que o nosso avô vos impôs, por uma medida que ele achou acertada no momento.

- Acertada? – Perguntou, atónito, Tomás.

- Errada, sem dúvida, mas para ele justa porque destituída de qualquer racionalização ou veleidade de entendimento. Foi o que o coração lhe ditou face aos acontecimentos da época e, meu cunhado, entende-me, não o estou a justificar de modo algum, estou unicamente a tentar contribuir para o bálsamo que suavize a dor da tua alma.

- E a minha irmã, sobreviveu a tudo isso?

- Claro que não Tomás, tive muitos problemas, alguns dos quais ainda hoje não consigo falar sobre eles, mas temos que ser nós próprios a tentar entendermo-nos, o que não é nada fácil. Mas para isso existem psicólogos. – Respondeu Nazamba.

- Mas eu não estou doido!

- E quem disse que estás? O psicólogo é alguém que talvez te ajude a encontrares a luz ao fundo do túnel, nada mais. – Insistiu a irmã.

- Olha Tomás, com o nosso casamento e a vinda próxima do filho, a Nazamba encontrou uma harmonia, ainda que relativa... os fantasmas do passado não mais a apoquentam assim tanto. Certamente que a paz e este reencontro da família farão o mesmo por ti, verás. Tens é que ter fé e desejares modificar o rumo da tua vida.

- O Nataniel tem razão, se tu próprio não desejares e não quiseres modificar-te, ninguém poderá fazê-lo por ti. Tem fé em ti mesmo.

Ouviu-se um bater de palmas e um dos enviados do soba grande anunciou-se, solicitando que o acompanhassem, Juba de Leão esperava por eles na sua casa principal. Saíram, Nataniel à frente, procedido dos irmãos que caminhavam lado a lado. De longe, foram alvo de olhares perscrutadores, como se o princípio do mundo estivesse a ter lugar, todos desejavam ser testemunhas oculares do desenrolar dos acontecimentos. Nada do que me contaram, disseram-me, bem, jurar não posso, mas... Não, nada disso, teria que ser eu estive lá, eu vi, eu ouvi, aconteceu mesmo assim, ninguém me disse, tão certo quanto eu estar aqui, podes crer porque testemunhei. Há muito que esperavam ver os irmãos sair após as idas e vindas de Nehone, e, por fim a de um dos dignatários do próprio soba grande. Só um assunto de assinalada importância poderia ter como correio tais hierarquias, mesmo considerados os laços familiares.

A circunstância de Tomás ter deixado a tropa longe tranquilizara muita gente, todavia a pistola à cintura, bem como o sabre e as granadas no cinturão, ainda mantinham outra tanta preocupada. Se as coisas dessem para o torto, será que o neto dispararia contra o avô? Com a irmã e o marido presentes, não se acreditava, porém nunca se sabe o que o diabo reserva para amaldiçoar quem ele quer.

O curto trajecto pareceu a Tomás uma eternidade, os seus passos pesavam e sentiu medo, como se caminhasse para o pelotão de fuzilamento, logo ele, cognominado “Sem Medo”. Esperou que não fosse notado o suor que lhe escorria pelas têmporas e que evitava limpar exactamente para não atrair a atenção para o acto, já que a manhã até estava fresca. Tão forte e arrogante e agora que chegava o momento do face a face com o seu pesadelo, fraquejava que nem donzela em noite de núpcias. Tentou entender o tumulto que o arrebatava, mas mais se atrapalhou e quase tropeçou. Esboçou um esgar de sorriso, fingindo que tropeçara e ergueu o torso, mantendo uma postura militar de desfile.

- Estás a sentir-te bem? – Perguntou-lhe Nazamba, notando a respiração.

- Estou, só espero que não seja um paludismo. – Disse, para se justificar perante o olhar de preocupação dela.

Chegaram e encontraram Nehone à porta, que os mandou entrar, Nataniel primeiro, Tomás depois e, por fim, Nazamba. Mantiveram-se à entrada, sem saber o que fazer ou o que dizer, até que Nehone fechou a porta, anunciando deste modo a toda a aldeia que o assunto, para além de familiar, era reservado.

Saberiam do que seria tratado em tempo oportuno, mas mesmo assim, com os mais velhos à frente, foram-se chegando devagarinho.

Juba de Leão, sentado na sua cadeira, com o cabo de rabo de boi na mão, um adorno na cabeça real, demonstrava que não toleraria faltas de respeito, nem dos seus netos. Era o poder personificado, o soba grande, o sacerdote e só depois o avô, para os receber e resolverem as questões antigas, um conciliábulo restrito. Olhou de soslaio para as armas de Tomás, mas não ficou intimidado, antes pelo contrário, sorriu com um sorriso de desdém.

Não me metes medo com essas tuas armas!...

- Os meus netos são bem vindos, por isso não são preciso armas aqui, que elas sejam entregues a Nehone.

- O meu avô que me autorize a falar, mas ele é militar, como eu, e um militar nunca pode separar-se da sua arma, muito menos entregá-la a um civil. – Disse Nataniel, esperando que a questão ficasse encerrada.

- Que assim seja. Fica! – Concedeu Juba de Leão, para não se colocar em posição de desautorizado. - Sentem-se, vocês dois ali e a Nazamba aqui. – Indicou os lugares.

Nehone continuou de pé, como o garante da verticalidade da conversa que se desenrolaria em breve. Não haveria línguas de camaleão a saltarem inopinadas não se sabe bem donde, para num segundo viscoso enrolarem a desavisada presa até às mandíbulas.

- Já sei que comeram, mesmo assim vamos saudar o nosso encontro com um pouco de comida e bebida primeiro, depois quero falar. – Disse Juba de Leão.

Os pratos e a comida estavam em cima de uma pequena mesa, tapados com outros pratos de alumínio, bem como uma cabaça de aguardente e outra de cerveja de milho, ambas com umas canecas ao lado. Nehone abriu a porta e logo entraram duas mulheres que colocaram a comida no prato, provaram-na e entregaram ao soba. Após este a ter provado igualmente, as mulheres serviram Nehone, Tomás e Nataniel e saíram.

- Minha filha, vais ter que te servir tu própria. – Disse Nehone.

Sem acreditar no que vira e ouvira, mas entendendo o olhar suplicante do marido, Nazamba levantou-se e serviu-se um pouco da comida, voltando ao lugar. Dispensava aquela mistela a que chamam cerveja de milho, feita Deus sabe-se lá com que água, de que cacimba ou poça. Olhou para os homens a comerem e a atirarem os ossos da galinha para dentro de uma tigela feita de meia cabaça. Enquanto o repasto durou, ninguém falou, Tomás sempre de olhos no chão, o que não passou despercebido, quer a Juba de Leão quer a Nehone, que desconhecendo o neto, não consideraram que ele estivesse intimidado, podia até ser que isto fosse o disfarce para lhes abrir a guarda e apanhá-los desprevenidos. Não se esqueciam que já tinham fugido dele duas vezes para manterem a vida, e que a aldeia fora quase toda destruída. Nehone abriu novamente a porta, o que fez recuar a população todavia ainda distante, uns oito ou nove passos e, com um olhar fugidio, fez entrar as mesmas mulheres para levarem o que sobrara para fora. Antes de partirem, trouxeram uma pequena bacia com água onde todos lavaram os dedos, para de seguida agarrarem nas cabaças e serviram a cada um conforme seu desejo, Juba de Leão e Tomás a aguardente, Nehone e Nataniel a cerveja. Nazamba recusou, tirando da bolsa que trouxera uma pequena garrafa de água. Com o mesmo silêncio que entraram, as mulheres abandonaram a sala e Nehone fechou novamente a porta.

Juba de Leão endireitou-se na cadeira, agarrou no cabo de rabo de boi e limpou a boca com as costas das mãos, hábito antigo e mecânico. Chupou os lábios, passou a mão pela barba, notava-se que procurava a palavra inicial que levasse à frase certa, não estava a falar com o povo ou com o conselho de anciãos, os netos eram gente estudada e viajada pelo mundo, não teria que decidir sobre a repartição de uma colheita, ou o arbítrio de um caso de infidelidade, ou a invocação de um conjectura a ver com o mundo invisível.

- Mais uma vez sejam bem-vindos. Despertaste-nos hoje muito cedo – disse Juba de Leão, bem-humorado, a Tomás. – A que vinhas? Sabias que a tua irmã estava cá, era?

Tomás arrastou as botas no chão, colocou as mãos nos joelhos e ergueu os olhos para o avô, fitando-o longamente até este pestanejar. Demonstrou que não estava intimidado, que o confrontaria segundo os caminhos ou descaminhos que desse à conversa, que viera em paz mas que não levaria agravo com ele. Nehone notou o despique e não conseguiu saber se ficara feliz ou não, mas, pelo menos não houvera faísca a incendiar tudo logo de início.

- Não senhor, não sabia, foi uma surpresa muito agradável.

- Estás então feliz desta vez, foi um bom sinal que encontraste na aldeia!

Velho safado, é assim que pensas que vais escapulir?

- Foi de facto, pela primeira vez em muitos anos esta aldeia representou uma alegria na minha vida, graças à presença da minha irmã, só graças a ela.

- Nunca mais pensaste que ias encontrá-la, não é? – Insistiu Juba de Leão.

Mas afinal o que é que ele quer?!...

- Assim é, já a tinha enterrado há muito tempo no meu coração e no meu pensamento.

- Ainda desejas destruir a aldeia e matar o teu avô?

Tomás pensou longamente no que responder. O seu primeiro impulso foi para saltar-lhe logo ao pescoço e pô-lo a estrebuchar, porém os conselhos da irmã retiniram e respirou fundo para ganhar tempo para pensar, algum dia teria que parar e talvez esta fosse a melhor altura. Ou esperar pelo regresso da mãe e todos confrontarem o velho, lavar tudo de uma só fez com o mesmo jacto e impacto. Duvidou que Balanta aguentasse a reabertura de feridas tão profundas e semi enterradas, nunca mais iria sofrer por essas questões, isso ele garantia.

- Não vim para destruir a aldeia nem matar ninguém, estamos em paz a guerra acabou, como deve saber. – Respondeu.

- Então o que viste cá fazer tão pela madrugada e mais ainda pela calada?

Queres mesmo saber, velho caduco?

- Vim para meter medo, para apanhar comida e ir-me embora.

- Meter medo? Meter medo a um velho que não se pode defender?

- Também nós crianças não éramos capazes de nos defender e meteste-nos muito mais do que medo, meteste o inferno nas nossas vidas e na dos nossos pais! – Gritou Tomás, não se contendo e fazendo um esforço enorme para não se erguer.

Nazamba de imediato se levantou e colocou-se por trás do irmão, as mãos em seus ombros, massajando-os, para o acalmar.

O silêncio tornou-se pesado ao ouvir-se unicamente a respiração ofegante de Tomás. Juba de Leão baixou a cabeça e assim se manteve por um largo tempo.

Mas o que mais quer este meu neto maluco?

- O que eu fiz está feito, agora temos que olhar para a frente! – Por fim respondeu, em voz abafada e roufenha.

- Só assim, meu avô? – Perguntou Nazamba, não se importando se lhe era autorizada a palavra ou não.

- Só assim! – Respondeu, autoritário e conclusivo

- Então nada mudou?... O que está feito está feito e nada mais? – Insistiu Nazamba.

- Temos que olhar para a frente, o que morreu, morreu!...

- O avô acha que vamos aceitar essa desculpa esfarrapada? Que passamos todos estes anos em sofrimento e amargura para ouvir agora que o que morreu, morreu? Sabe que o seu genro Marcelo, o meu pai, morreu desgostoso, doente e com a mulher dele, a sua filha Balanta, no coração?

Juba de Leão baixou novamente a cabeça, deixou-a mesmo pender quase até aos joelhos, mas pronto se recompôs. Endireitou o corpo, deu-lhe porte erecto e olhou a neta nos olhos, desabridamente.

- Lamento o que me contas, mas o que te quero dizer é que a água corrida está corrida, só a nova vem pela frente. – Respondeu-lhe serenamente.

- Não continuamos a ser filhos da cobra então? – Perguntou Tomás. – Continuamos mulatos como o éramos em 1975, ou agora já somos pretos... podemos regressar?

- Não, continuam a ser mulatos, mas depois disso as coisas mudaram.

- O que mudou foi o avô, as suas ilusões, as suas pretensões. Hoje está velho, a guerra mostrou-lhe que não manda nada, não é isso? – Disse Nazamba.

- Não se fala assim a um velho, ainda por cima seu avô! – Respondeu Juba de Leão.

- E naquela altura, não era já nosso avô, só agora? O que interessava sermos mulatos ou pretos? – Perguntou Tomás

- Era, sempre fui e serei vosso avô.

Este velho deve estar a pensar que somos parvos!...

- Diga-me uma coisa, já viu cobra acasalar com galinha-do-mato? – Perguntou bruscamente Tomás.

- Que pergunta é essa? – Indagou Juba de Leão, surpreso.

Apanhei-te, velho safado.

- Já viu cobra fazer filho com o jacaré? – Insistiu Tomás.

- Claro que não!...

- Então como somos nós filhos da cobra?

- Mas para quê todas esta confusão?... – Meio gaguejou o velho.

- Explique bem avô, a cobra era a nossa mãe Balanta ou o nosso pai Marcelo?...

Mas o que querem então estas crianças?

- Posso saber o que vocês querem? Cobra é cobra e pronto! – Disse Juba de Leão, agastado.

- Que cobra é cobra, sabemos nós, o que desejamos confirmar é se a cobra era só o branco, o nosso pai. Também filhos da tua filha Balanta, que lhe cedeste voluntariamente e, segundo os mais velhos me falaram, entregaste terrenos e direitos de comércio sobre os outros brancos porque te interessava e te fazia importante junto a eles, foi ou não foi? – Perguntou Tomás.

- Fiz porque era o que tinha que fazer. – Respondeu Juba de Leão.

- Claro, e acasalou sua filha com a cobra… - disse Nazamba.

- Menina, olha como fala, sou teu avô…

- Mas se ela também não fosse cobra, como nasceríamos nós?

- Como nasceriam vocês?... - Não percebeu, Juba de Leão.

- Que saiba, cobra só faz filho com outra cobra, ou não? – Indagou Nazamba, fingindo que o não ouvia.

- O que queres que eu te diga, minha neta? – Disse o velho, baixando, sem querer, os ombros para a posição natural que a idade lhe impunha.

- Afinal nunca houve cobra alguma! Se houve, também tens que ter gerado a cobra que nos gerou, não é? – Gritou Tomás, erguendo-se e dirigindo-se a ele.

- Não é assim que se fala ao seu avô!... – Ripostou, Juba de Leão, vergastando o sibilante enxota moscas na sua direcção, como que o esconjurando para longe.

- Então como é que se fala ao homem que agora diz ser nosso avô, ensina-nos por favor. – Retorquiu Tomás, desejando ser ferino.Juba de Leão começou s sentir-se sufocado e agarrou na cabaça, servindo-se. Tossiu longamente e escarrou para o lado, limpando depois o chão com a sandália. Não cessava de olhar para Nehone como que solicitando uma intervenção sua, uma amostra de solidariedade.

- Sou vosso mais velho e vosso avô. Não entendem que o que passou já passou?

- Eras o famoso Juba de Leão, mas também aparentado dos brancos, o sogro deles, e sentias-te muito honrado certamente. – Voltou à carga, Tomás

- Como ousam dizer-me essas coisas? – Replicou Juba de Leão, tentando levantar-se, sem o conseguir.

Nehone afastou-se sub-reptíciamente para o canto mais escuro do aposento, a fim de observar à vontade, e sem interferir no diálogo e o incómodo evidentes do irmão mais velho. Nunca sonhara, nos seus mais vivos sonhos de vingança, que algum dia pudesse testemunhar o que se passava naquele momento.

- Nessa altura não havia na tua cabeça sonhos de independência, assim a cobra era o preto... Mas logo passou a ser o branco, quando viste a possibilidade de ganhares autoridade, mesmo à custa da tua família, não foi? – Insistiu Tomás, recuando para o seu lugar.

- Avô, por favor responda, precisamos que laves da nossa vida esta sujidade com que nos tingiste. – Pediu Nazamba.

- O que querem ouvir? O que já passou, passou! – Respondeu.

- Não é assim, avô. – Insistiu Nazamba. – E se a guerra recomeçar, vai outra vez repetir-se tudo o que aconteceu? Vão novamente andar a fugir para o mato, com o Tomás ainda com uma raiva maior à sua procura?

- O que vocês querem é que o vosso avô vos peça desculpa? – Perguntou Nehone, por fim e avançando para junto de Juba de Leão.

Já observara tudo o que queria e achava que tinha o dever de mostrar solidariedade para com o soba grande. O seu silêncio tinha uma medida, não a poderia ultrapassar sob pena de ser chamado à tábua depois.

- Acho que seria o mínimo que ele deveria fazer!... – Respondeu Nazamba.

- Não lhe podem exigir isso, já vos respondeu que o que passou, passou. – Disse Nehone.

- Sim tudo já passou, menos nós. Até o nosso pai morreu amargurado, mas sempre com a terra que o adoptara na alma e com a imagem da nossa mãe a comer-lhe o coração. – Fustigou Nazamba, desperta pela memória.

- Tentem ver a idade do nosso avô e a sua maneira de pensar – quis Nataniel evitar que a tensão aumentasse e se perdesse a razão.

- Cunhado, por favor não te metas nisto, fala só de Cuba para onde foste de livre vontade e com todas as honras, a ti ninguém te abandonou, não eras filho da cobra não obstante partilharmos o mesmo avô.

Nazamba foi novamente sentar-se, e juntou o seu banco ao do marido, a quem fez uma festa no braço.

A conversa morreu quando notaram que o velho chorava, silenciosa mas copiosamente, as lágrimas escorriam-lhe pelas faces.

- E agora? – Perguntou após um momento, Nehone?

- Agora nada! – Disse Nazamba. – Agora sabemos que se arrependeu e que nos está a pedir desculpa. Agora entendeu que não somos filhos da cobra e que só poderíamos ser netos dela, porque a cobra foi ele, a sua língua, as suas acções sinuosas e rastejantes. Foi necessário o tempo, foi necessário ver pretos a matar pretos por todos os cantos de Angola e sentir o medo pelo neto, para entender que errara e que percebia cada vez menos o que acontecia á sua volta.

Levantou-se Nazamba e colocou-se de joelhos junto ao avô, segurando-lhe as mãos.

- Nunca deixámos de ser teus, avô. Nossa mãe, que está com o Tomás, é tua filha!

- Vossa mãe está com o Tomás? – Endireitou-se e olhou para a neta.

- Sim avô, está com o Tomás, foi ele que a levou para viver com eles e ela está bem e feliz.

Olhou para o neto e sorriu. Sem vergonha ou compunção, limpou abertamente as lágrimas com o lenço que Nazamba lhe estendera e ergueu-se, com ajuda dela.

- Afinal você é mesmo um grande comandante!

Tomás levantou-se e foi abraçar o velho, que ganhara forças para estender os braços ao neto.

Do canto do olho, Nehone observou a cena e sorriu. Os netos haviam levado a melhor, o velho nunca mais ousaria opor-se fosse ao que fosse em relação a qualquer dos três, o círculo fechara-se ali, longos dezassete anos depois. A paz estava reconstituída naquele ramo da família, paz necessária para que ele pudesse pôr a segunda fase dos seus desígnios em marcha para sentir-se vingado e satisfeito. Tinha o sangue dos antepassados do seu lado, o que teria de ser corrigido sê-lo-ia.