sábado, 7 de novembro de 2009

JOSÉ SARAMAGO


AGORA QUE O MAIS VELHO JOSÉ SARAMAGO ESTÁ NOVAMENTE NA RIBALTA, COM O SEU CAIM, RECORDEI-ME DA VISITA DELE À UNIÃO DOS ESCRITORES ANGOLANOS, EM NOVEMBRO DE 2000, ALTURA EM QUE EU ERA PRESIDENTE DA DIRECÇÃO EXECUTIVA DA MESMA.
TIVE O PREVILÉGIO DE TER O LIVRO "A CAVERNA" DEDICADO, O QUE EM GERAL MUITO DIFICILMENTE ELE FAZ. TENHO MAIS UNS DOIS, MAS SÓ RUBRICADOS. PERDOEM-ME A INCONFIDÊNCIA.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

SUMAÚMA


MAGOS

Os magos
atiraram feitiços
para fruir
falas de loucos

e a cobra dançou
ondulante
nos buracos escuros da mente


MADRUGAR

Madrugar
injustiça
secular

terror
ignorância
incolor

lamento
estrela
fermento

amor
carinho
sofredor

COLANS


Esta crónica, verídica, escrevia-a em Maio de 2005 e foi uma das que mais prazer me deu a compô-la, por isso, já tantos anos passados, desejo compartilhá-la novamente convosco. Ao olhar para a televisão, numa notícia sobre os casamentos homossexuais, logo me recordei deste meu trabalho, escrito durante as olimpíadas de Sidney, na Austrália, quando a minha virilidade fora tão abjectamente posta em causa. Logo eu, hum?!... Assim, permitam-me que vos reconte o rocambolesco acontecimento, muito antes da Bruna(o) e do seu jovem “marido” darem este passo de puro avant-guardismo nacional.


Escrevi então, e transcrevo:


A semana passa alguns dos semanários luandenses fizeram furor com o primeiro “casamento “ gay nacional. Não desejo referir-me ao mesmo, cada um come do que gosta, sobretudo na era das modernices, como disse aquele coitado que, chegado de surpresa a casa, apanhou a consorte em desvios matrimoniais com um big, big man: "Ai filha, tu e as tuas modernices! Um dia ainda te apanho a fumar na cama".

Viva pois a globalização.

Há bem pouco tempo, tivemos oportunidade de ver na televisão, penetrando-nos pela casa, atletas de todo o mundo a desfilarem os novos trajos olímpicos, os colans. Delirámos com as centenas deles, cada qual o mais bonito, o mais multicolorido, o mais berrante e chamativo. Inteiros, só parte de baixo, meia perna, etc., numa requintada inovação da moda desportiva. Os que mais atenções chamaram, foram os usados pelos nadadores, numa versão unisexo, às vezes até extravagantes.

Se vos falo desta peça de vestuário, é com o mero intuito de levantar o moral daqueles poucos machos angolenses que a usam, como eu, nas minhas corridas matinais pela Ilha do Cabo. Falo ainda, e igualmente, para protestar quanto ao pernicioso subdesenvolvimento dos luandenses em matérias de colans, e sobre os desagravos a que fui sujeito ipso facto.

Sou dono de um colan preto, curto, que uso ocasionalmente no meu footing matinal na Ilha do Cabo, como já referi. Nada de mais, aliás até somos dois, um vizinho igualmente usa um similar há anos. Talvez nele, por ser negro, o colan passe despercebido, enquanto que eu, com esta pele de kilombo kia hasa (albino) mal disfarçado, provoco toda uma gama de apartes. Jocosos uns, maldosos outros.

Um dia, na contra mão, vejo um casal de meia-idade avançando em passo lento. Ele, um senhor alto, muito alto e de ar distinto. Ela, muito mais baixa e redonda, igualmente dama de distinção. Segundos escassos antes de nos cruzarmos, ele estaca a olhar para mim e, malgré soi, as palavras disparam como pedras:

“Um homem de colans?!...”, escapa-se-lhe, do fundo da alma, a revolta e o descrédito no que via.

A senhora ainda lhe deu uma cotovelada na coxa e olhou para o lado, envergonhada. Só sei que nunca mais os vi na Ilha. Mais vale a pena prevenir do que remediar, terão pensado, vendo-me certamente um marginal perigoso.

Outra vez foi um damo, num carro branco bonito. Vinha, largado, a caminho de Luanda e ao ver-me, trava bruscamente.

Mal imaginava eu porquê!

Pouco depois, já tendo dado a volta na bolacha da estátua do pescador, passa novamente, agora em câmara lenta, tirando os azimutes. Quando entro na recta final, já no outro lado, a caminho da minha casa, eis que dou com o damo estacionado, olhando-me de viés, o motor ligado, muito adequadamente, não vá o diabo tecê-las e afinal o que ele pensa que é, não é, já que nos dias de hoje não dá para arriscar em desmasia, como diz um amigo. Agora julgo saber o que as donzelas sentem quando observam o lobo mau a rondar.

Finjo que não noto, e uns metros mais adiante, ouço a viatura arrancar, passando por mim, de fininho, esvaecendo-se no horizonte, a caminho de Luanda. Teria achado que eu não era, só pode!

Ao chegar a casa penso atirar com os danados colans para o lixo, mais aí a minha sensibilidade revolucionária impediu-me. Disse para comigo mesmo, “bolas, foi assim que a Alemanha perdeu a guerra”, e continuei a usá-los.

Próxima cena!

Um belo domingo, por volta das seis da manhã. Na curva ao fundo da Ilha, encostados às pedras na berma da estrada, dois casais, elas de pé, os barrigudos sentados nas duas caixas térmicas, varrendo o que seriam, penso eu, as últimas fresquinhas da noitada anterior. Uma das tias, a de olho de lince, tão aguçado quanto o seu instinto de caça, mira o arcaboiço do rapaz aqui, que se aproximava naquela passada rítmica e certa. A uns vinte metros, gosta do que vê (presunção e água benta cada um usa da que quer) e quase que não contem a emotividade. O marido (será?) nota o lance da balzaquiana e também olha, preocupado. Apanhada desprevenida, vira-se lesta para a amiga e diz:

“Olha pr’áquele!... Estes velhos têm a mania que ainda f…” (auto censura).

Encho o peito, diminuo o passo a provocar e desafio, garboso, o olhar das manas, quem pensam que são?

“Já viste o cu do gajo? Deve ser bicha!...”, responde lesta a outra, quase na minha cara.

Acuso o toque, possa, não sou de ferro para ser assim ofendido à toa!

“Deve? É, certamente!...”, e larga uma gargalhada de bruxa, vingada pelo deslize não controlado.

O marido (será?), talvez ainda enciumado, atira lenha no fogo.

“O gajo deve ser veado… de colans?”, ouço, já uns cinco metros à frente, meu corpo curvado e a passo lento, vencido.

Não imaginam pois o conforto moral que senti quando vi as Olimpíadas de Sidney., sobretudo a natação. Graças a elas, continuo a usar os meus velhos e surrados colans, orgulhosamente só, porque estou seguro quando o meu vizinho ler este desabafo, vai parar de usar os seus.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

TEATRO (Casimiro Alfredo)


PÁTRIA

ACTO II

CENA 1
(No palco encontra-se a Mãe-Pensador. Colans cingindo o corpo esguio, mantém uma postura ausente, posicionada de cócoras, cotovelos nos joelhos, mãos no rosto. Entra em cena a Jovem. Descalça, entra carregando um galo negro. Os três figurantes que a acompanham, apresentam-se de túnicas rasgadas e sujas, como que regressados de uma longa batalha. Todos calçam agora botas militares. O grupo entra e ganha o centro do palco, formando um semicírculo em torno da Mãe-Pensador).

A JOVEM
(com o galo nas mãos, estende os braços em jeito de oferenda) Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a saber quem tanto mal nos quer!... Ajuda-nos mãe... ajuda-nos a saber quem os nosso homens atormenta, levando-os a expulsar-nos das lavras... para nelas semearem a própria estropiação... Aceita esta oferta, ó Mãe!... Aceita esta oferta, e ajuda-nos a limpar o mal que na carne germina... que os nossos filhos come, que as nossas casas destruiu, que dos nossos espíritos tem gula...

CORO
Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a banir os espíritos, que nossas vidas atormentam...

A JOVEM
Aceita esta oferta o Mãe!... Aceita esta oferta e ajuda-nos a limpar o mal que na carne nos germina...
Terão os nossos avós resposta?...
Saberão eles a razão das nossas chagas?...
Serão eles a razão dos nossos males?...
Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a banir os espíritos que as nossas vidas atormentam...
(insinua-se e vai-se tornando progressivamente audível, um ritmar batucado, que lentamente parece envolver as duas mulheres. A Mãe- Pensador, como que despertada da sua letargia, leva um recipiente aos lábios, entregando-o depois à Jovem, que cumpre o mesmo gesto ritual. O ritmo agora é dominante. As duas mulheres envolvem-se, e perdem-se, num frenesim dançante em torno do trio figurante que, em coro, vai repetindo a última “fala” da Jovem. Apagam-se as luzes, saem os actores)

CENA 2
(Luz vermelha, atmosfera difusa. D.Ana de Sousa, o Padre e João C. de Sousa, movem-se no palco, como que encerrados num espaço limitado por interdições que os transcendem. É o “limbo”. D. Ana e o Padre permanecem juntos. João C. de Sousa, irrequieto, caminha enérgico no espaço limitado pelo, imaginário, limbo)

D. ANA DE SOUSA
(recebendo a bênção)
Vós Padre, vós que conheceis os segredos divinos, sabeis quanto tempo mais aqui permaneceremos?

PADRE
Tempo minha filha?... A purificação é o tempo. Libertação de ofensas terrenas e o desapego, é o que à alma basta para ao Criador se unir...
JOÃO C. DE SOUSA
(Interrompendo brusco)
Ide pregar noutra missão ó Padre. Ide juntar-vos aos correlegionários lá no Congo, ou aos traidores do Colégio de Luanda... Ah!... Pudesse eu regressar e... juro, juro pela minha alma e barba que dessa raça de apóstatas nada sobraria...

PADRE
(Benzendo-se)
Louvada seja a misericórdia do Altíssimo, que tanta blasfémia perdoa e poupa ao fogo do inferno... Cuidai de redimir o ódio que em vida o coração vos empederniu, antes que a alma, única graça que vos resta, caia em poder do demónio...
Chamais traidores aos incansáveis obreiros da Companhia de Jesus?... Acaso ainda vos não abandonou a alucinada... demente suspeita, contra o Ouvidor-Geral e Vereadores da Câmara, durante o triste governo que haveis encabeçado?...

JOÃO C. DE SOUSA
(levando a irritação ao extremo)
Demência Padre?... Chamais demência à imposição da lei, contra as maquiavélicas maquinações do Ouvidor, dos Jesuítas, e daquele filho d’um corno do Alvarez... que fugiu à sindicância alegando perseguição?... (O Padre benze-se repetidas vezes, e de mãos postas, cabeça baixa, parece orar)... Alucinada!... Alucinada é a estória que os hipócritas jesuítas espalharam. E sabeis para quê?... Para justificar o hábito que o Colégio vendeu ao velhaco... hábito vendido em troco de bens, que naquelas terra da Etiópia, pertença D’El-Rei Filipe o III, o danado roubou e roubalhou...

PADRE
Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...

JOÃO C. DE SOUSA
Escutai ó Padre, escutai a estória por eles contada...
“Espalharam os traidores, que estando o cabrão do Alvarez... Menino Diabo, como alcunha o nomearam... a prestar serviços ao Altíssimo em tempo de Quinta-feira Santa... espalharam os traidores, ó Padre, que possuído por um daqueles pecados, que aos homens incha o nervo dentre as pernas, o Diabo do Menino daí se foi para um canto com a escrava, mas de tal ordem era a inchadura do nervo, que o diabo d’um cabrão, mais a escrava servida. Ficaram coladinhos que nem cães... e contam eles, os jesuítas, que livrou-o do apuro o Altíssimo, a quem por prometimento e voto, a vida e riqueza confiou....”

PADRE
(como se quisesse exorcizar um demónio)
Tarrenego, tarrenego satanás. Abrenuncio. Cruzes canhoto...
D. ANA DE SOUSA
(colocando-se ao lado do Padre)
Não fizesse o Álvarez voto, e certamente sofreria as consequências, da atribulada governação de Vossa Senhoria... ou deverei chamar-vos Padrinho?... Menos de dois anos bastaram, para contra vós se levantarem todas as vozes de súbditos, vassalos, e aliados de Filipe, o III de Portugal, IV de Espanha...
Tendes razão Padre. Libertação de ofensas terrenas é o que à alma basta, para ao Criador se unir...

D. JOÃO C. DE SOUSA
Falais como um cristão-novo D. Ana... a que se deve tamanha devoção?... Idade?... ou adversidade?.-..


D. ANA DE SOUSA
A adversidade, meu bom governador, confirma apenas estratégias e alianças talvez necessárias, mas erradas... quanto à idade, é algo que nunca ireis compreender, mas para vosso proveito vos digo... a idade é a evidência de um ciclo que se esgota, é a dúvida reafirmada, uma oferta por cumprir...

JOÃO C. DE SOUSA
Ora, ora D. Ana!... Deixai-vos de teosofias, que o vosso passado conheço eu bem. Até o céu tem um preço... (voltando-se para o Padre)... minto?...
Dizei-me D. Ana, acaso vos ditou apenas vossa virtude, que uma Igreja com hospício e mais não sei, mandásseis construir?... Tudo por graça, e em graça, de Sta. Maria padroeira da Matamba... abençoada afilhada a minha, que tal devoção manifesta...

D. ANA DE SOUSA
Continuai, continuai a lançar vossa peçonha, que não será a vossa odiosa irreverência a pôr-me de mal com a fé que decidi abraçar...

PADRE
Pobre infeliz!... Deus não negoceia almas, conquista-as pelo amor... D. Ana de Sousa reconciliou-se com o Criador, acaso haveis vós feito o mesmo... antes do corpo vos encomendarem?... Deus me livre da maledicência, mas no “Limoeiro” se encarceram os criminosos, e ao que se diz, o último suspiro lá vos surpreendeu... lá se faz, lá se paga, e aqui se aguarda o troco...

JOÃO C. DE SOUSA
Orai Padre, orai e não sejais maledicente nem malicioso, que isso também é pecado! (vira as costas ao padre e retoma o enérgico vai-vem pelo palco)

CENA 3

(Ouve-se um som de trombetas, preludiando a acção seguinte. Uma luz azul, intensa, ilumina o fundo do palco. D. Ana, como que obedecendo a uma força superior, encaminha-se para a luz, atravessa-a e sai de cena. João C. de Sousa ensaia uns passos na mesma direcção, mas uma invisível barreira parece detê-lo. Cessa o som das trombetas e desaparece a luz. Entra em cena o Degolado. Faz-se acompanhar de dois guardas armados -um de mosquete, outro de lança e adarga -e de um pajem, que empunha, e agita constantemente, um “rabo de cavalo”).

JOÃO C. DE SOUSA
(Para o recém-chegado)
O ceptro e a coroa não vejo, mas digno de um rei é o séquito. Acaso falo com El-Rei D. Pedro Afonso, II do nome?...

O DEGOLADO
4 décadas, 2 Alvarez, 2 duques mais um Conde, e 1 Rei que degolado foi...
4 décadas de Pedro a Garcia... ambos Afonso... passaram...
3 Álvaros... se seguiram após o III... e reinaram...
2 Ducados mais um Condado... o que guarda as portas do reino, chamada Mbamba, o que o reino herda, chamado Nsundi, o que a todos observa, chamado Sonho... dois ducados mais um condado, o poder se disputaram...
1 Rei degolado... em Ambuíla... a cabeça em procissão lhe Levaram, e numa ermida lha guardaram...
4 décadas de Pedro a Garcia... ambos Afonso... passaram. E eu António Afonso, chamado o I, em Ambuíla degolado fui...

JOÃO C. DE SOUSA

Perdão Alteza, mas deveras notável é a fisionómica semelhança...

PADRE
(fazendo uma vénia)
Que a paz de Deus inunde, e afaste do coração de Vossa Majestade, as maléficas sombras do passado...

JOÃO C DE SOUSA
Procurais mais devotos, Padre?... Vede bem, porque este, onde irá Vossa Senhoria meter a hóstia?...

PADRE
(surdo ao remoque)
Que a Srª da Nazaré, vele para que a vossa Real cabeça em paz repouse . Que a Stª Padroeira da Ermida, ajude a penitenciar ofensas e pecados...

O DEGOLADO
É ofensa negar, não aceitar, ambições e guerras alheias, Padre?... É pecado querer distender ódios antigos, esquecer fratricídios e guerras intestinas, para reafirmar uma soberania ameaçada?...
Ofensa seria ignorar a arrogância... demonstrações de força servindo um “trato” que aos filhos da terra extermina, e nem o sangue Real poupa... pecado seria ignorar intentos que minas de ouro exigem, alegando promessas antigas...

PADRE
Vossa Real cabeça na casa de Deus se encontra!... Porque não deixais que da alma, de igual modo se ocupe o Criador?... Os erros que refiro, meu filho, consubstanciaram-se na batalha onde a cabeça haveis perdido, para salvação da alma...
Trágico foi o ano de 1665, em Ambuíla, terras de D. Isabel, fiel vassalo da Coroa portuguesa, por graça da gloriosa acção de Salvador Correia de Sá e Benevides...

JOÃO C. DE SOUSA
(provocador)
Ora, não fiqueis com essa cara Alteza!... Quem sabe um dia Vossa Alteza não regresse, em cortejo triunfal, para da Nazaré... a Santa, não é Padre?... vossa cabeça resgatar, e aos que vossas minas ambicionavam, castigar... Insondáveis são os desígnios do Altíssimo... não é Padre?...

PADRE
Pode Vossa majestade mofar... mas acaso tereis esquecido que a própria Virgem com o Menino ao colo, al lado do Lopes de sequeira, no campo de batalha se manifestou, mostrando a ofensa cometida?... (fazem-se ouvir, como que surgindo do nada, um coro de vozes acompanhado de lamentos. O Padre e João Correia, inquietam-se).

VOZES
(fazendo-se ouvir no palco)
Terão os nossos avós resposta?...
Saberão eles a razão das nossas chagas?...
Serão eles a razão dos nossos males?...
Ajuda-nos ó Mãe! Ajuda-nos a banir os espíritos... que as nossas vidas atormentam!... (cessam as vozes, continuam os lamentos).

JOÃO C. DE SOUSA
(encolhendo-se)
Que prodígio é este ó Padre?... Vozes de Deus, ou vozes do Diabo?

PADRE
(encolhendo-se com João Correia)
Avisos meu filho, avisos do céu tal como em Ambuíla...

O DEGOLADO
(mantendo-se tranquilo)
Ambuíla é um lamento intemporal!... Confluências de vozes imemoriais... futura emanação de alianças e contradições...
Vozes transportadas pela mágica evocação dos segredos da terra... tentando desvendar segredos outros...

JOÃO C. DE SOUSA
(retomando o tom desdenhoso e irónico) Ora, não passamos de ilusória memória, incapazes de evacuar a vivência digerida... (cessam os lamentos).

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO

ALFREDO TRONY


NGA MUTURI

Nga Ndreza (nome que tem na sociedade de Luanda, uma sociedade onde só avultam os panos, sim, mas que guarda um certo número de conveniências) afirmara que é livre, que foi criada em Novo Redondo, e pertenceu à família de F…; e quando muito, cala-se quando lhe perguntam se é buxila (1).
Também ninguém faz questão disso já. E que a fizesse! Ela, à força de afirmar que não foi escrava, esqueceu-se de [não] ter sido sempre livre. E contudo quando se senta à porta da casa com a faca fincada entre os joelhos apertados pelos braços seguros pelas mãos enclavinhadas, nas noites de luar quentes e sossegadas, e cujo silêncio é só quebrado a espaços pelo seco bater, na areia da rua, dos pés dos gingamba (2) que carregam uma machila, ou pelos gritos estridentes das molecas da vizinhança que apregoam ruidosas bonzo - ni massa – ia tema, tema, tema (3) ; ou então – ao ver na casa fronteira o vulto da pequena vendedeira, destacando-se na sombra do corredor pela luza avermelhada da candeia de azeite de palma – tem uma vaga recordação de outros tempos passados numas terras muito longe, de onde a trouxera quando era pequena.
Lembra-se de uma mulher a quem chamava mama, enfezada e triste, mas resignada, que a levava pela mão para as sementeiras, e que à noite cantava na cubata, amamentando outro filho enquanto ela comia massa e fijá (4) cozido.
Lembra-se mais, que um dia se abeirou da mãe um preto que era seu irmão, e, depois de muito falarem, ele foi deitar-se e adormeceu; e a mama tomou-a então nos braços silenciosa, deixando cair uma lágrima bem quente sobre o seu rosto. Que ela olhava espantada tudo aquilo, mas que por fim adormecera. Quando saiu o sol, abanaram-na docemente e ela deparou com a mama que tinha uma galinha na mão que acabara de matar. Cozinhou-a no fogo e com o nfungi (5) apresentou-a ao irmão e a ela. Que todos comeram, mas a mama soluçava tristemente queixas sentidas, iguais às que ouvira quando aconteceu a morte do soba. Parecia um tambi (6).
Que depois disto o irmão da mama a puxara pela mão, arrastando-as para fora do cercado da cubata. E ele seguiu-a muda e inconsciente, mas voltando-se viu a mama, com as mãos na cabeça chorando bem triste.
Andara dois dias, ao fim dos quais chegou a uma libata onde morava o tio que a levava. Pelas conversas que ouviu no caminho, soube que o tio tinha sido condenado por juramente, e para pagar o crime a fora buscar à mama, pela lei da terra que obriga os sobrinhos a pagar os quituxi (7) dos tios.
Depois entregaram-na a um preto grande, falando muito, isto diante do soba, que estava rodeado de homens velhos, debaixo de uma grande árvore no meio do largo da libata.
Recordo-me que lhe tinham amarrado a cinta com uma corda feita de casca de um pau, que sobe pelas árvores grandes e as cobre, como as cordas que viu no navio em que a levaram mais tarde para Luanda.
Ainda tem presentes os brutais sofrimentos todas as noites durante a jornada, e os grandes dentes brancos que lhe mostrava o seu dono quando ela chorava e gemia.
Passados muitos dias chegaram a uma libata estranha, onde as casas, todas brancas, eram muito diferentes das que havia na sua terra, e estavam à borda do mar.
Que entrara numa delas onde havia muita peça de fazenda, e missangas penduradas, e fora mostrada a um homem em mangas de camisa, e que a esteve a apalpar e tinha o ventre muito inchado e um olhar igual ao reflexo metálico das chapas de cobre que traziam os pretos de Luanda, que passavam na sua terra.

(1) Filha de escrava ou de mulher livre mas nascida na casa em que serve
(2) Carregadores
(3) Batata-doce, quente, quente, quente.
(4) Milho e feijão
(5) Papas de milho ou de mandioca
(6) Óbito. Há sempre a imolação de um animal, os pobres fazem-no com uma galinha.
(7) Crime

Que este homem falou muito com o tio, e lhe deu muitos panos e um espelho: e que o tio a deixara ali, e voltara para a terra.
Que a mandaram lavar, e desmanchar-lhe o lindo penteado seguro pelo ngunde e tacula que lhe fizera a mama, tirando-lhe as missangas e os búzios e todos os enfeites. Que lhe vestiram uns panos bonitos, e que uma preta que estava em casa e servia o senhor à mesa, olhava para ela, iracunda, e a ameaçava com o olhar, confirmado pelo que lhe dizia às escondidas, de lhe fazer feitiço.
Que o muari (1) inquirindo disto, mandara castigar a preta, e logo que chego pelo mar uma canoa muito grande com umas coisas muito brancas estendidas nuns paus lembrando as asas de uns pássaros enormes que vinham ao rio da sua terra quando começavam as chuvas, metera a preta na tal canoa, e ela ficara sendo a mucama (2) do senhor.

II
Passou alguns anos naquela vida. Tinha aprendido um pouco a língua dos brancos, e já não era desajeitada no vestir dos panos como quando viera.
Um dia o muari esteve doente e meteu-se com ela e dois moleques num navio, que os levou a Luanda.
O senhor foi tirado para o escaler e levado para o cais numa machila, muito doente, para uma casa grande de sobrado. – Que ela seguia atrás da machila a correr, com trabalho, por causa da muita areia. – Depois melhorou, passou para outra casa, onde abriu loja. Tinha muitas chitas, lenços e riscados, que vendia ás pretas da quitanda (3), e a outra gente.
Nga Ndreza conheceu então o que era, e o que devia parecer. Esqueceu-se da primeira época da sua vida, e respondia com umas reticências duvidosas às perguntas que lhe faziam sobre a sua origem.
- Que não sabia bem – isto com ares maliciosos – quem era o pai, mas que se lembrava de um branco quando era pequenina, que a tomava nos braços e a sentava no colo à mesa. – Exactamente o que vira fazer à filha da mucama de um amigo muari. E como era fula (4), todas as comadres que a iam visitar com a ideia de lhe beber o vinho e comer o presunto que o patrão comprava, diziam que sim, que ela tinha sangue branco.
E ela gostava muito, e nessas ocasiões levantava importante e cautelosa a tampa cheia de pregos da caixa de vinho do Porto; e enquanto o patrão estava na jogatina, gastava muito, fazia ceias e bebia de mais.
Quando o patrão vinha de madrugada, e mimoseava o moleque que ficara deitado à porta para lha abrir, com uma antiga moeda de prata de seis macutas (ainda não havia deste dinheiro, hoje está todo no Banco) se ganhava, ou com uma saraivada de pontapés se perdia, encontrava-a a dormir na sua esteira; e ele, muito grosso, como diziam os caixeiros quando o viam assim, acordava-a com umas falas arrastadas para o ajudar a deitar-se, aconchegando-lhe o inchado fígado com uma travesseira, e dando-lhe uma fomentação no baço mais inchado ainda, rogando ele muitas pragas com as dores.

///
A cena de que ela não se quer lembrar, mas, por mais que faça naquelas horas de recolhimento, apresenta-se nítida à sua memória, foi a da surra que o patrão lhe mandou dar.
Como não pode repelir a lembrança, começa no seu pensamento a atenuar o crime – que ela não tivera culpa, porque enfim era menina nova, e o patrão não se importava com ela senão de meses a meses.
Cada vez que se lembrava, sentia os mesmos arrepios que a repassaram quando o patrão deu com ela e o preto da machila, o Ebo, um bonito moço Ginga, forte e esbelto, com uns olhos que eram os seus pecados, na casa por trás da loja onde arrecadavam cascos vazios e outras coisas, ambos encostados a uma pipa.

(1) Senhor da casa, chefe.
(2) Preta criada de quarto e também concubina
(3) Lugar onde, largo ou rua, as mulheres pretas vendem algodões, chitas, pratos, etc.
(4) Preta clara

Ainda lhe tilintam aos ouvidos, como os mazuela (1) dos carregadores, as palavras que disse o patrão:
- Ah, grande…, eu já andava desconfiado. Deixa estar.
Ela pôde fugir pela porta do pátio, e subir pela escada que ia dar à casa de mesa.
Daí a pouco apareceu o patrão seguido de dois pretos do Bengo que tinham vindo com as cargas; e mandando-a amarrar ao mastro que segurava a caixa do macaco, levantaram-lhe os panos e levou cinquenta chicotadas. Ainda se lhe apertam os músculos da parte açoitada com esta lembrança, mas custa-lhe mais a vergonha que sentiu. Se o patrão lhe desse um tiro ou uma facada, como fez um rapaz das cubatas (ainda então não estavam na Ngombota) a quem acontecera o mesmo com a barregã, e então feia como o manipanso de um cabinda que ela era, vá: mas açoitada como os negros, ela a mucama, Nga Muhato (2) como diziam, era de mais.
Enquanto o chicote zunia e o macaco dava saltos na caixa abanando o mastro que a segurava, ela pensava em se matar. E é que também lhe doía muito.
Quando a desamarraram, caiu com o rosto para o chão, fingindo-se morta. Foi um feliz expediente. O patrão disse: - Oh! Diabo! Matei o raio da preta!
Disse que a levassem para o quarto, e mandou à moleca que lhe tinha dado a ela, a Bebeca, que fosse para lá deitar-lhe água na cabeça. Nga Ndreza não saiu do quarto por muito tempo, e a todo o momento esperava que o patrão a vendesse.

III
O quarto dela ficava ao pé da casa de mesa, a varanda, e sempre que o patrão ia jantar, punha-se a olhar e escutar ao buraco da fechadura para ver se falava nela. Tinha também dito à Bebeca para lhe contar se o patrão dizia alguma coisa.
Não buliu no comer que lhe ia da mesa, mas tasquinhava umas postas de peixe compradas na taberna de um degredado, e quicuanga (3), mas tudo às escondidas.
Um dia o patrão ao jantar, depois de os caixeiros descerem para a loja, disse para um vizinho muito amigo que jantava com ele - Assim como assim, fica como dantes. Estou dente, ela já sabe os meus usos. Se há-de vir outra que faça o mesmo e não me sirva…
- É melhor, é - disse o vizinho com compadecimentos hipócritas. – Tu és doente e aquilo não valeu nada. Talvez até nem chegassem a fazer mal.
- Isso não, que eu vi muito bem…
- Pois sim, mas no fim de contas nós estamos velhos. E depois – fez com uma fingida resignação canalha – tudo é o mesmo. Olha, a que lá tenho, que tem fama de ter muito juízo, e sabes que esteve em casa da D. Luísa a aprender, quem sabe o que fará?
- Não - disse o patrão com mágoa -, a tua Chica é boa rapariga, todos o dizem.
- Pois sim, eu também disse aquilo só por falar. Que, deixa-me dizer-te, coitadinha dela se mo fizesse! Mas, meu amigo, eu não como miolo de enxergão, não tenho a tua boa fé, a mim ninguém me faz o ninho atrás da orelha.
E Nga Ndreza ao ouvir isto dardejou-lhe um olhar pelo buraco da fechadura que, se o vizinho visse, não falaria tanto.
Porque ela mais que uma vez pela janela do beco tinha surpreendido a Chica na varanda, em brincadeiras com o caixeiro, o Serra, que o vizinho queria fazer sócio – e quando foi ao Bengo dar balanço à loja que lá tinha entregue a um degredado, uma vez o Serra não lhe estivera a fazer cócegas, e a Chica em corridinhas, com o pano seguro só num ombro, a fingir-se zangada, batendo-lhe com a mão e dizendo – cambo o sonhi (1) – mas em grandes gargalhadas? Oh! Se tinha visto.
E depois a Chica não fugiu para a camarinha e o Serra não foi atrás dela, e fechou-se a porta, e lá estiveram um bom bocado, saindo o Serra primeiro, muito comprometido, e muito corado, olhando desconfiado em volta, e depois ela, como se não tivesse havido nada, não

(1) Guizos que os carregadores usam à cinta para afastar as feras, quando vão para os matos
(2) Senhora, senhora casada (à moda da terra), mulher.
(3) Bolo feito de mandioca fermentada
(4) Falto de vergonha, sem vergonha


veio ralhar com uma severidade digna com a moleca que estava no pátio a brincar com o preto da loja?! Tal e qual.
E nessa rápida lembrança que acompanhou o tal olhar, murmurou:
- Que burro!
Dois dias depois Nga Ndreza já corria pela varanda e à noite o patrão dormiu muito melhor com a fomentação do baço e o conchego do travesseiro debaixo do fígado.

///
Mas Nga Ndreza andava triste, não tinha filho. – As amigas, muito invejosas, diga-se a verdade, diziam que talvez fosse dela, mas que era mau – que os brancos não se prendiam bem, senão quando tinham filhos, que precisava ter um. Lembraram-lhe promessas feitas a Nossa Senhora da Muxima, ou que fizesse feitiços, e fê-los.
Havia uns dias que o muari, quando entrava na camarinha, começava a cheirar, a cheirar, fazendo desagradáveis trejeitos – cheirava mal. Qual seria o gato, ou cão, e corria os cantos da casa, mas nada. Nga Ndreza estendia a sua esteira ao pé da cama, e ficava muito quieta fingindo dormir.
Uma noite o muari disse que havia de saber a causa do mau cheiro. Chamou os moleques, o da mesa que era o Muhongo, e o da loja, e fê-los revistar tudo. Estava desesperado, eis que o Muhongo começou a desfazer a cama e a mexer no colchão.
Nga Ndreza entrou a resmonear, mas o moleque continuava procurando, até que, achando um buraco no colchão pela parte de baixo, e metendo a mão, tirou uns pés, uns ossos e uma cabeça de galo com a sua crista e penas.
Nga Ndreza ficou atrapalhada; o patrão olhou para ela, não disse mais nada: foi a um canto, tirou um junco, e zás, zás, zás, nas suas costas roliças e luzidias. – Caíram-lhe os panos de cima, e mesmo assim, com as mãos cruzadas no seio, fugiu para a varanda. O patrão deixou-a, e nessa noite dormiu numa cama de campanha que estava ao pé da sala onde jogavam às vezes.
Era a acama onde costumava dormir o juiz um grande sono, até vir a canja, quando ia lá à batota, e o limpavam logo ao princípio.
No dia seguinte veio o mestre Pedro, colchoeiro, e fez o novo colchão. Nga ndreza esteve muito séria; não comeu, nesse dia nem no outro.
Enfim as coisas compuseram-se. Tinha chegado novo sortimento ao patrão, e ele mandou-a chamar uma noite à loja depois de fechadas as portas da rua e ali lhe fez escolher um pano da costa, umas peças de chita e um fio de corais, daqueles grandes que custam a macunha tato ni tato ni kipaca (1) – cada bago, bagos muito grandes. Então ela contou-lhe tudo, com certas reservas todavia - Disse-lhe ele que não se importasse, que se morresse não havia de ficar sem nada.

///
Pouco tempo depois o patrão entrou numa noite para casa a queixar-se de uma pontada no lado esquerdo, e pontada foi que no outro dia estava morto.
Nga Ndreza portou-se dignamente.
Quando vieram os galfarros da Junta, como dizia o vizinho, que ficara testamenteiro, o escrivão deputado (ainda não havia secretário como hoje) viu-a sobre a cama ao lado do cadáver do patrão, que estava coberto com um lençol.
O escrivão-deputado chegara do Reino havia pouco tempo e estranhou o caso; mas o escriturário, filho do país, muito asseado e com o peitilho da camisa muito lustroso, fez a cortesia digna e disse: - São os usos da terra, é óbito.
E como o defunto encarregara o testamenteiro de liquidar a herança e entregá-la aos herdeiros directamente, pouco tiveram a fazer, saindo logo o escrivão-deputado na frente, em seguida o vizinho com muitas cortesias e dizendo a tudo: -“Sim senhor, sim” -, e mais atrás o escriturário que perdeu uns minutos a cumprimentar muitas raparigas, todas com os seus

(1) 1000, a tradução: 33 macutas e 10 réis.
panos negros a cheirar muito, à tinta, e que faziam companhia à Nga Muturi (1). O escriturário ao sair a porta cruzou com uma sua conhecida que entrava rebolando muito presumida as cadeiras monstruosas, mas com o parecer consternadíssimo, e ao cruzar deu-lhe ali um belo apertão, mas conservando sempre a gravidade da ocasião. […]

V
[…] Nga Muturi, passado o nojo, foi para sua casa e tratou de vender a roupa do falecido, que ele lhe tinha deixado e mais a mobília.
Houve uns zunzuns por ocasião da entrega da roupa a Nga Muturi feita pelo testamenteiro, que tinha levado muito tempo, diziam, mas foi peta. – As malditas línguas de Luanda, que tudo envenenam – dizia o testamenteiro ao Lopes, guarda-livros da Sobral, e muito gabado em escrituração, uma vez que ele lhe contou o que se rosnava. – Que era impossível praticar ele tal acção, estando ainda quentes as cinzas do seu amigo. – E dizia isto indignado, furioso passeando rápido ma loja fora do balcão.
Nga Muturi afligiu-se muito quando uma amiga, com assomos de indignação hipócrita, lhe referiu, valha a verdade muito acrescentando. Esteve muito tempo a falar, dizendo que ela não era negra, nem tinha os costumes que diziam isto, e repetia isso muitas vezes, fitando a amiga. Esta, que não podia perder as relações de Nga Muturi, atalhou logo – que aquilo tudo era inveja por ela estar rica.
Via-se embaraçada para vender a roupa, mas por conselho do testamenteiro entregou-a ao Serra que ia para Casengo à colheita, e lhe dizia que ali se trocava tudo a café muito bem, que era um negócio da China.
Quem não ficou contente coma incumbência quando soube foi a Chica.
Aproximava-se o aniversário do óbito. Já se falava nas missas, e todos diziam que seriam de estrondo. E foram faladas com efeito.
A gaêta (2) era das melhores, e o batuque tinha vindo do Bengo. Havia dois tocadores que se revezavam. Quem tocava o batuque era o Felèla, que tinha sido moleque do Ferreira e dele tirava o nome estropiado. A ricanza de bordão, novinha em folha, era esfregada com toda a arte por uma velha já sem dentes, mas ainda muito amiga de brincadeira. Fora das melhores para a brincadeira, nos seus tempos.
- Se a vissem – dizia o velho Torres, com umas saudades lúbricas de outrora.
Dançaram toda a tarde e toda a noite. Houve muita concorrência. O vizinho deu um bezerro, e um garrafão de vinho. Nga Muturi teve mais outros presentes. Ainda gastou muito dinheiro.
Muito nfungi e carne guisada. Houve quitoto. Aguardente e genebra. Como sabia que iam brancos, tinha duas garrafas de vinho do Porta marca Triumpho de Bacho. O Santana, guarda da alfândega, que era quem lhe escrevia as cartas para Casengo, para o Serra, por causa da roupa, foi de opinião que comprasse do Maria Claudina, isso é que era vinho, que era a melhor marca. Que o Triumpho de Bacho vinha todo falsificado. O primeiro que veio, esse sim. Mas Nga Muturi, como o vizinho do defunto falecido só tinha desta marca, não o quis escandalizar, comprando em outra parte.
Foi um batuque falado. Dançavam no pátio. O João das Lanchas emprestou uma vela que servia de toldo.
Estavam duas velas nos castiçais de louça branca com florões dourados dentro das mangas de vidro no meio do quintal a alumiar. Dançavam em roda.
Apareceu tudo quanto havia de bom em raparigas. – As filhas naturais do tenente-coronel Fontoura, que tinha morrido no Golungo Alto, com as suas exageradas quindumbas (3), eram as que dançavam melhor, com mais garbo. Todos o diziam. A porta do corredor estava fechada para não deixar entrar todo o fiel patife. O Santana era quem tinha a chave.


(1) Senhora viúva
(2) Corrupção de gaita. É como n terra é designado o harmónio, instrumento indispensável num batuque na cidade. A orquestra compõe-se de gaeta, batuque e ricanza
(3) O cabelo muito levantado adiante e cortado de forma que figura um diadema.


///
O Lobato, claviculário do Cofre dos Órfãos, também lá foi com o delegado novo que tinha chegado no último paquete. Quem pediu ao Lobato para o apresentar foi o ajudante da conservatória.
Na varanda estavam as sobrinhas do Monteval, que não dançavam porque eram de vestidos. Nga Muturi não queria dançar também, por mais que a desafiassem - Que não parecia bem, que tinha de fazer as honras da casa.
À meia-noite bateram à porta, e entro o Serra, tinha chegado naquele momento de Cazengo, no Cunga. Nga Muturi ficou muito contente e correspondeu-lhe as duas sembas que ele lhe deu. Tinha bebido dois copos de vinho ao jantar, e, a pretexto de incomodada do estômago, tomou o cálice de genebra.
Tinha o olho brilhante, e falava com verbosidade para todos, e especialmente para o Serra a quem perguntava muitas coisas. O Serra vinha pálido, mas não descansava no batuque. Apesar de um amigo, que tinha vindo com ele, lhe dizer que não bebesse genebra, não fazia caso e entronava copinho sobre copinho. – Que estava muito suado, que não queria que lhe fizesse mal.
Às três horas acabou-se a festa, para continuar no outro dia.
O Serra foi o último a sair. Nga Mututi tinha muito que lhe falar por causa da roupa. Tocava já a alvorada.

VI
As missas continuaram.
Haviam de durar oito dias, nada menos, dizia Nga Muturi, e muito melhor que as dos Mártires, pelo irmão que tinha sido capelão cantor, porque as dele, cuja memória ainda estava fresca, se haviam durado oito dias, fora à custa dos convidados, que todas as noites tinham de concorrer com a sua espórtula. As de Nga Muturi – essas não, seriam à sua custa unicamente, que não precisava de subscrições.
Ao quarto dia, porém, sentiu-se incomodada, um mal-estar esquisito, estranho. – As amigas notaram-lhe a face demudada. Ela dizia que era cansaço, mas os oito dias seriam cheios.
Não foram, porque a tristeza da dona da casa dava um tom sombrio à festa.
Enfim passaram os oito dias e as raparigas começaram a pensar lembrar-se de que missas estavam à bica. Falava-se nas de D. Luísa pelo marido; nas de José Bento pela mãe e não faltavam as raparigas com denguices aos homens com quem tratavam para alcançar dinheiro para novos panos.

///
Ao nono dia depois das missas, Nga Muturi, que não se sentia melhor, arranjou-se conforme pôde, e foi à botica do Teves. Era de manhã. Chegou mesmo quando ele saía da machila que o trouxera das caieiras, que tinha ido ver cedo, como costume.
Ngana Teve, como ela o cumprimentou, começou logo com o seu palavriado de costume, perguntando-lhe o que tinha, quando casava, dando-lhe muitos conselhos, que tivesse juízo, que não se deixasse comer.
Nga Muturi, coberta com o seu pano preto e os olhos baixos, começou com meias palavras a queixar-se de um mal, que lhe parecia lombriga, porque sentia isto e aquilo, com umas reticências duvidosas, a ponto de Ngana teve olhar muito fito para ela e dizer:
- Já sei, já sei. – E levou-a para um canto da farmácia ao pé da porta que deita para a escada, e ali fez perguntas em voz baixa a Nga Muturi, às quais ela respondia com os olhos no chão, por monossílabos, espalmando a mão sobre os panos, como querendo acertá-los.
Ngana Teve concluiu em voz alta:
- Está bom, está bom. Vai-te embora, rapariga, e manda cá uma garrafa para te arranjar o gomoso.
E quando ela se retirava, envergonhada, ele da porta, com a sua bengala de gancho a bater pancadinhas na soleira, disse-lhe de longe:
- Olha os banhos, hem, com malvas.

///
Nga Muturi nunca mais pôde ver o Serra. Lembrou-se até de lhe fazer feitiço, mas abandonou o projecto com um longo suspiro. […]

In “Nga Muturi”, União dos Escritores Angolanos, 1980

ALFREDO TRONY
Nasceu em Portugal, a 4 de Fevereiro de 1845, e faleceu em Luanda a 25 de Julho de 2004, tendo-se dedicou à advocacia. Fundou e dirigiu os periódicos Jornal de Loanda (1878), Mukuarimi (1888), e Os Concelhos de Leste (1891). Os excertos aqui contidos, são da sua única novela, Nga Muturi, primeiramente publicada em folhetim no Diário da Manhã, jornal português, em 1882, descoberta e reunida em volume quase um século mais tarde

O PADRE


Com aquela mania de sempre andar com um pequeno canivete nas mãos, usado para cortar as cabeças dos sardões menos lestos, ficara apodado de Zé Canivete. Não que fosse congenitamente maldoso, todavia o mato, a natureza, com suas leis inexoráveis, desenvolvia em nós crianças rurais, sensações e actos que se integravam plenamente na sua essência e manifestações.

Que diferença haveria entre um Louva-a-Deus a triturar em suas poderosas mandíbulas verdes uma cigarra, trinando angústia estrídula no despedir da vida, e o Zeca Canivete a agarrar o sardão para o decapitar a fim de que pudéssemos observar, com eterno pasmo e expectativa, o seu corpo estrebuchar?

O que poderá parecer insensibilidade, talvez sadismo precoce, era o exteriorizar das leis que a natureza revelava e imprimia subliminarmente. Se a inocência se caracterizava nos brinquedos de bordão que construíamos, a lâmina afiada na pedra era a possibilidade de domar o inexplicável, neste caso, a vida ou a morte, no mesmo rito que a cobra engolia o passarinho indefeso em encantamento.

No meio de todos os fantasmas, monstros e seres indescritíveis que a imaginação produzia, sentíamos sobremaneira a poesia da crueldade como sublimação das sensações. O subconsciente, transfigurado no medo ao relâmpago, por exemplo, era algo que não nos cabia entender, vinha dos primórdios do gesto humano. Em termos reais era-nos tão estranho quanto o haveria de ser para o sardão ao lhe ser cortada a cabeça. Deste modo, arremessávamos na balança da vida o contraponto dos valores, permitindo o seguir do curso natural de um rio ora mais fundo, ora mais raso, em queda, tormentoso ou sereno, conforme se afunilasse ou espraiasse. Se nosso crescer fosse suas margens, restava-nos aprender efectivamente se era o rio que as fazia, ou elas que o controlavam, que ditavam a personalidade da sua fluidez e caminhos.

Só mais tarde, muitos anos mais tarde, por paciência ou por imbecilidade, encontramos algumas das respostas que, quiçá, nos tranquilizem o suficiente para justificarmos o instinto, a agressividade do animal ainda tão perto da caverna há pouco abandonada. Na essência, os grunhidos continuam a sê-lo, mesmo se revestidos de suposta transcendência em relação ao primeiro momento do seu significado e propósito. Pouco nos separa das vibrações animalejas, dos medos naturais e primordiais, por muito seguros que nos vejamos nos caminhos já trilháveis da divinização humana, esboçando um pretenso entendimento do cosmos, enfim, daquilo do que para lá resta infindável. Continuaremos a grunhir, como grunhiu o primeiro, até ao dia em que arrogantemente se tente subjugar por completo a Natureza, pensando que suas leis, por mais domadas que estejam, sejam conquista da ciência sobre a metafísica, conquista do racional sobre o medo. E aí, ela se vingará da arrogância e da premeditação, e forçar-nos-á a olhar novamente para o umbigo com a humildade de quem redescobriu que é parte intrínseca e inalienável dela.

Por isso, para nós, o perigo estava no silêncio do mato porque um qualquer kifumbe nos poderia salta à frente no cafezal ou no bananal, coito das surucucus.

O silêncio ensurdecedor do mato é a mais terrível das sensações. Cortar a cabeça aos sardões era tão banal quanto chamar ao José Silva, Zeca Canivete. Em ambas as atitudes, havia uma evidente falta de imaginação, um seguir natural da acção, como a noite a seguir o dia. O resto, era abstracção. Eram os corpos dos sardões a retornar à decomposição, pelo nosso prazer infantil.

Nunca poderíamos, então, pensar ou julgar que, o atravessar do bananal medonho, os medos que sentíamos ao prever a aparição do kifumbe, seriam os mesmos ou mais profundos, ainda que conscientes, que o sardão sentiria ao ser caçado e agarrado e depois decapitado. Tanto nós quanto os sardões, perante este enigma e dilema comuns, fugíamos aterrados pelas picadas da selva, pois não tínhamos conhecimentos para saber que a Natureza, Deus, é um acto e uma criação do Medo, um gesto humano que nos leva a concentramo-nos sobre nós mesmos e nossa irrelevância universal, na busca perene do Equilíbrio.

E foi, quem sabe, por esses códigos naturais e imutáveis da Justiça, que Zeca Canivete, anos mais tarde, tornou-se padre e enlouqueceu numa prisão.

Teria ele uns dez anos quando o pároco da missão católica, a muito custo, conseguiu convencer a família a deixá-lo entrar para o seminário. A nossa perda foi incomensurável. Perdemos o irmão, um pedaço que se esvaía, um sopro a menos em nossas vidas. Quando tivemos a certeza de que ele partiria para sempre, apanhamos tantos sardões quanto possível e purgamos nossa frustração no ritual agora da orfandade precipitada.

Numa manhã de cacimbo vimo-lo subir para a carroçaria da carrinha do roceiro, rumo a Vila Salazar, onde apanharia o comboio para Luanda. Pela primeira vez, soubemos o que era o significado do sonho desfeito, afinal a vida tinha regras que não se compadeciam com o desordenado ritmar dos nossos corações imberbes. Nessa mesma noite sofri pesadelos terríveis, onde aparecia no meio de centenas de campas à berma da estrada, com um sardão em contorcionada agonia, encimando cada uma delas. E de longe, muito longe, em som diáfano, ouvi o riso de escárnio de Zeca Canivete, repercutindo pela floresta em cada árvore. Tive então a certeza de o amigo dilecto nunca mais voltaria, era o castigo personificado, as forças do mal desceriam sobre nós. Os sonhos, revelou-nos o mestre adivinho que consultamos, mostrava que corríamos perigo se continuássemos a cortar as cabeças dos sardões, também filhos da Natureza, portanto, da vida e de Deus. Os animais faziam parte da nossa vida no Mundo. Quando se sacrificava um galo ou um cabrito, mesmo um cão, para satisfazer a ira de um qualquer espírito zangado, era um gesto natural permitido. Todavia, sacrificar animais só pelo prazer de olhar para a morte sacolejando no corpo do bicho, poderia ser maléfico, no meio de muitos desses sardões, uns seriam conselheiros de Kalunga. Ele, o mestre, ainda na véspera ouvira uma galinha a tentar imitar um galo, deveríamos parar imediatamente com essas práticas, a partida do nosso amigo era um sinal claro do desagrado do mundo espiritual.

Perdemos o que nos restara da inocência, ao entrarmos no mundo invisível. O medo ao castigo desconhecido, passara a estar ali atrás de qualquer árvore.

No domingo, após a missa na missão, dirigimo-nos para o açude que existia na roça de um dos fazendeiros, laço encarnado amarrado no tornozelo, conforme instruções do mestre curandeiro, e lavamos a pemba encarnada que nos fora colocada pelo corpo. Não poderíamos ser apanhados assim publicamente, e juramos que se alguma vez o Zeca Canivete voltasse à aldeia, haveríamos de o denunciar como feiticeiro perigoso.

Mal sabíamos que José da Silva, anos mais tarde, seria efectivamente padre e um dos nomes na luta de libertação nacional. Acabou por ser desterrado para um campo de concentração onde, à força de questionar Deus sobre Suas estranhas maneiras de agir, veio-lhe repentinamente à mente a carnificina contra os sardões e, entendendo pela geometria do oposto o que questionava e o que fizera, percebeu a inutilidade da Consciência.

Nessa partícula do momento, enlouqueceu para todo o sempre. Viveu o resto da pouca vida que lhe coube amarrado, porque por duas vezes tentara cotar o seu próprio pescoço.

domingo, 1 de novembro de 2009

AMOR DE PERDIÇÃO


Na Ilha do Cabo não havia quem não conhecesse o Bola de Funji, assim apelidado não se sabe bem porque razões. Talvez pela gordura e indolência.
O Bola era uma paz de homem, manso como um boi .
Era raro vê-lo nervoso ou zangado e passava tão despercebido que nunca se lhe conhecera uma namorada. Arranjara emprego numa sociedade de armadores como mecânico de motores navais, sendo respeitado e o seu trabalho apreciado. Um verdadeiro profissional.
Julieta Neves, igualmente da Ilha, era uma jovem mulher, daquelas que gostam de mandar e habituada a levar razão. Durante muitos anos vendeu peixe; porém, um dia decidiu que não era profissão para si, arranjou um cooperante búlgaro que lhe pagou um curso de informática e lá foi Julieta trabalhar para a Bulgarexport, como secretária. Infelizmente sua prestação laboral foi uma verdadeira bulgaridade. Até ele, estrangeiro, conseguia escrever melhor português. Acabou-se o trabalho e, por consequência lógica, o patrocínio da bela marítima ao búlgaro.
Após várias outras tentativas, igualmente infrutíferas, descartou um italiano de quem muito gostou, um brasileiro e um jugoslavo. Optou, assim, por voltar à venda do peixe, profissão muito mais artística e conforme a sua natureza expansiva.
Foi com grande espanto, pois, que os locais viram o Bola de Funji começar a andar com a Julieta Neves.
“Aué mana, coitado dele!”..., dizia uma.
“Eh! Vai fazer então o quê, com ela, se nem os cooperas lhe aguentaram!”, dizia outra.
“Entafuna ka dya ko ekumanana i diye?”, alvitrou uma terceira.*
“Xê, você então, aqui ninguém fala kikongo.”, atirou a que primeiro falara.
“Quer dizer que devemos aproveitar o que aparecer...”, respondeu a outra.
Bola de Funji subiu na consideração de muitos. Afinal o homem era touro bravo, de boi manso só a aparência.
“Sabe mano”, dizia um pescador, “às vezes essas gajas assim precisam é mesmo dum que não lhes ligue muito..”
“Não sei, papá!... Quem já viu o dia casar com a noite? Nunca!... Um só segue o outro, nunca se encontram.”, respondeu um outro pescador.
“Mas o que lhe deu então? Nunca lhe vimos com mulher e agora, de repente, agarra logo nessa que já passou em tanta mão que até tem marca.”
“Pode ser que dá certo.”
Durante um ano deu certo, certo até para desconfiar, diziam as invejosas cujos maridos as haviam abandonado. Todavia, para desconfiar nunca houve mesmo nada.
Bola de Funji era bom marido, sempre em casa a horas, salário religiosamente nas mãos da mulher que lhe devolvia um tanto para os cigarros, um filho parido há pouco, enfim, nada para se lamentar. O resto era só inveja, esse sentimento tão comum a toda a gente luandense, que nunca conseguiu aceitar ver o próximo a ter sucesso ou viver tranquilo.
Por seu lado, Julieta Neves sossegara bastante, mantinha o lar com um mínimo de dedicação já que se consagrava ao peixe durante a maior parte da manhã, cuidava do filho e do marido e nunca lhe dera aso a reprovação.
Mas...
Há que haver sempre um “mas” na vida das pessoas. Um dia, Julieta encontrou-se com o italiano, Vittorio, o antigo amante e de quem ela verdadeiramente gostara, a despeito de a ter despedido e mandado embora quando deu conta que escrevia melhor português que ela.
“Buon dia Djulieta, cosa fai?...”
“Buon dia uma ova, seu cabrão de merda.”
“Djulieta!... Non fala cosi!...”, implorou com as mãos o napolitano.
“Que queres, já esqueceste que me abandonaste?”
“Ma cara mia, non sono io che te abandonou, io estava enamorato de te. Ma tu non podia lavorare colocando una hora para scrivere una lettera...”, tentou safar-se. “E dopo, tu non vogliava piu fare amore!”
“Julgavas que ia continuar a ser tua depois de me pores na rua?”
“Te voglio bene Djulieta!”
“Ai é? E de que me serviu isso?”
Pressentindo que a amaciara um pouco, Vittorio ligou a cem por cento o charme da bela Itália.
“Djulieta, te ricercato molto e non me quisseste... noi due eravamo para andar in Italia. “
“Engana-me que eu gosto, seu mentiroso dum raio. Agora sou casada! CA-SA-DA!...”, atirou-lhe, para ver o efeito.
“Non fare male, non sono geloso...”
“Geloso?...”
“Tchiumento!...”
“Não és ciumento?, que engraçadinho, mas cuidado que o meu marido é.”
“Quem, Bola de Funghi? Io sono estato a domandare, tuo marido non mata una mosca.
“Até pode ser, e por isso te mate a ti. Desaparece, vai à tua vida!”
“Va bene, va bene, ritorno domani e dopo andiamo a fare un giro.”
“Stronzo, todo este tempo aqui e ainda não aprendeste a falar português?”
Vittorio largou uma gargalhada e despediu-se, comprando-lhe duas garoupas. Julieta, sem o querer, arrumou o cabelo e os seios. Depois sorriu e remeteu-se ao trabalho.
“Merda!... Não fui feita para ser peixeira!”
“Ua zuela ima iai?”, perguntou-lhe a outra do lado.(O que disseste?)
“Não chateia, pá! Cuida da tua vida.”
“Tá bem, tá bem, só précurei saber!... Aué, kima kiai ki nga kubange?” (Que mal te fiz?)
Vittorio foi aparecendo com calculada frequência. Para além do charme e do sorriso a que Julieta conseguia dificilmente resistir, trazia sempre uma pequena prenda, aquele perfume que ela tanto gostava, um lenço, uns trocos a mais que fingia esquecer quando comprava o peixe.
As peixeiras vizinhas começavam a cruzar olhares insinuantes quando o Fiat do italiano aparecia, sobretudo porque pronto se notava uma mudança nos ares de Julieta. Logo tirava o pano que a cobria da cintura para baixo, revelando uma insinuante mini saia, sem falar do generoso decote que sempre usava. Quem olhasse para ela nesses momentos, não deixaria de notar e ver ali uma peixeira muito mal empregue.
“Uno desperdício!... Uno desperdício!”, dizia o italiano, erguendo as mãos ao céu.
“Agora já nem se cumprimenta?”, perguntaram as do lado. “Só tem olhos para ela, é? Cuidado então com o Bola de Funji!...”
“Buono dia sinhorinas, sono venuto para domandare a Djulieta que me faça, no prosimo sábado
una feidjoada com tutti, io ho amicci italiani que tchegam en Angola questa matina.”
“Agora sou tua cozinheira, é?”, disse Julieta meneando as ancas.
Vittorio piscou-lhe um olho, esperando que não tivesse sido notado.
“Non, Djulieta, non!... Voi pagar-te, cem dólares, solo para o sábado. Viene a la dieci de la matina e ritornas a le cinque...”, replicou piscando-lhe o olho novamente.
Julieta por fim entendeu e não soube o que responder. Virou-lhe as costas para as outras não perceberem a sua indecisão e excitação. Auá!, sacana do italiano.
“Não sei, tenho que falar com o Bola, o meu marido.”, disse para camuflar as aparências.
“Parlare com Bola di Funghi, per quê?...”
“E não é Bola de Fungui, seu atrasado, é bola de funji, FUN-JI..., capicci?...”
“Então não vai falar com o marido?”, perguntaram as outras. “Na Itália é assim?...”
“Bene, bene, parla com Bola di Funghi. De la dieci a la cinque de la tarde, domani ritorno para
saber.”
Julieta falou com o esposo, informou-o de que sábado próximo iria trabalhar na casa de um estrangeiro, das dez da manhã às cinco da tarde, para preparar-lhe uma feijoada completa que oferecia aos amigos acabados de chegar ao país, e que para tanto iria receber cem dólares. Quando Bola de Funjio quis saber quem era o tal estrangeiro e onde morava, Julieta perguntou-lhe se alguma vez se metera na vida dele.
“Você é minha esposa e não pode andar assim à toa, é mulher casada.”
“Que vou fazer de mais? Alguma vez te pus os cornos?”
“Não é isso, é o que os outros vão falar.”
“Deixa, já estou habituada. Quando me conheceste já não falavam de mim?”
“Mas agora te dei respeito, já ninguém mais fala!”
“Me deste respeito?, se não fosse eu, qual é a gaja que ia andar contigo? Eu é que te dei respeito!...”, ripostou zangada.
“Não é preciso discutir, só estava a pensar que não devias fazer isso, nem sei quem é a casa onde vais.”
“Estás com ciúmes? Quando te quiser cornear nem vais saber...”
“No dia que fizeres isso me mato.”
“Ai é? E porquê?”
“Julieta, você é a minha esposa, a única mulher que eu amei e amo, a mãe do nosso filho...”
“E pôr cornos é o fim? Que vida é essa que você me deu? Teu salário chega para quê? Quem põe as coisas cá em casa não é o meu peixe?”
Bola de Funji calou-se, a mulher tinha razão e, afinal, sempre fora uma boa esposa, estava só zangada e a falar da boca para fora.
“Pronto filha, vai. Mas cinco e meia estás em casa.”
E lá foi a meiga Julieta!...
As gargalhadas vindas do quarto de dormir de Vittorio eram muitas e felizes.
“Così Bola de Funghi deixou-te vir?” ria o italiano
“Se tornas a falar aqui o nome do meu marido, rebento-te a cara, seu italiano de merda...”
“Calma Djulieta, calma, non voi a fazer piu, era solo uno gioco!”
“Não quero essas brincadeiras. Estou aqui contigo e a minha casa não entra nessa conversa.”
“Pronto, calma, já mi sono discolpato...”
Após o amuo da praxe, que serviu mais de tempero do que outra coisa, entregaram-se ao amor, Julieta com a raiva acumulada pelo passado.
“Questa nera, Dio mio, questa nera, que follia!...”, gritava o italiano no auge do repasto.
Por fim relaxados, cada um com um copo de vinho na mão, Vittorio largou uma gargalhada.
“Deu-te para rir? O que foi?...”
“Voglio sapere fare la feidjoada com tutti .”
“Aqui na cama?...”
“Per che no? Fica una feidjoada erótica, da vero una feidjoada com tutti!”, e riu que se fartou.
“Ai é, meu cão?... Queres uma feijoada erótica?”, perguntou-lhe, passando um dedo pelo umbigo dele. “Ainda não te chegou?”
“Au-au-au-au”, fingiu que ladrou. “Non, non me tchegou, é la fome de molto tempo.”
“Na nossa Ilha dizemos, lamba kiambote pala diiala ku-ku-zola kiambote.”
“Traduzione, traduzione per favore.”
“Tradução!... Tens que fazer um esforço, possa!... Isso significa, cozinha bem para o homem gostar de ti.”
“Buono, voi fare uno esforço para parlare piu o português, ma solo dopo de la feidjoada erótica.”
“Pode ser que seja, mas agora vais ter que me dar trabalho, não quero mais ser peixeira!”
“Mas amore mio, tu scrivere molto mal!...”
“Não quero saber, ou há trabalho ou não há feijoadas eróticas.”
“Abandona tu marito, vive com me...”, contra atacou o magarefe.
“Abandonar o meu marido, viver contigo? Deves estar maluco, não?”
“Non, da vero! Vive com me.”
“Tudo isso é muito bonito, mas quando fores para a Itália a preta fica.”
“Nunca ritorno pio em Itália. Voi aprender o português bene...”
“Só o português?”, brincou ela, passando novamente o dedo, um pouco mais abaixo do umbigo.
O italiano começou a sentir a renovação das forças.
“Non, mia nera santa, la feidjoada também!...”, e ambos caíram nos braços um do outro a rir.
“Bem, prepara-te para saberes o que é uma feijoada com todos. To-dos, e não tutti!...”
Julieta sorveu o vinho e pediu para lhe acender um cigarro. Recostada na cabeceira da cama, achou que merecia viver aquela vida, arranjar um estrangeiro que a tratasse bem e com carinho. Estava farta da luta sem compensações, farta do gordo e paspalhão do marido que a única coisa que fazia era declarar-lhe seu amor de perdição, ainda por cima com as ameaças de matar-se se ela o deixasse.
“Porra!, que azar meu!”, falou alto.
“Que passa?”, perguntou o italiano, assustado.
“Nada.”, disse, afagando-o para o tranquilizar.
Julieta sorriu e acarinhou-o novamente. O balofo do Bola de Funji nunca brincara com ela deste modo. Sempre cansado do serviço, comer, ver televisão e dormir. Às sextas feiras faziam amor, mais por obrigação, mesmo não sendo ele assim tão mau na arte. Mas o peso, ai santo Deus, o peso é que lhe tirava as ganas. Bem lhe pedira para ser ao contrário, mas qual quê, lugar de marido é em cima e não havia nada que o demovesse. À mínima insinuação, resmungava logo, isto aqui não é lá como com os cabrões dos estrangeiros que andaste.
Calava-se Julieta então, e tentava tirar partido da situação, o homem até não fazia amor mal.
“Presta atenção. Começas por arranjar o feijão, mas vou já avisando que feijoada não é prato angolano...”
“Non fare mal, é buona!”
“Está bem. Colocas o feijão de molho com chispe de porco e entrecosto salgado. Depois levas ao fogo e quando atingir a fervura, juntas o chispe, o entrecosto, mais o chouriço, o toucinho e carne de vaca.”
“Questo tudo?”
“Sim, tudo isso. À parte, fazes um refogado com banha e cebola...”
“Banha, que é banha?...”
“Sei lá o que é banha em italiano... olha, a gordura do Bola de Funji.”, e riu, maldosa.
“Strutto, mia cara. Strutto.”
“Ouve lá, não disseste que ias ficar em Angola?”
“Si, voglio...”
“Então tu é que tens que aprender português e não eu italiano.”
“Va bene, banha. E dopo?”
“Depois, quando a banha começar a alourar deitas as carnes já cozidas e cortadas em pedaços, temperas com sal e pimenta, se quiseres fazer à angolana pões um pouco de jindungo, e juntas o feijão, com uns pedaços de cenoura cozida. E pronto, é só comer, depois de apurado.”
“Ah, amore mio, andiamo pronto a fare una feidjoada erótica, sono com fome...”
Uns três meses depois Bola de Funji, não aguentando mais a insustentável situação que a tal feidjoada criara, tentou encostar a mulher à parede com renovada ameaça de morte.
“Queres matar-te?, pois mata-te, mas não vais impedir de eu sair. Xê!, matei Cristo ou quê?”, gritava Julieta, enquanto colocava a mini saia vermelha, a que Vittorio mais gostava.
“A nossa vida nunca foi assim, desde aquela maldita feijoada que tudo mudou!...”
“Nada mudou, isso é o que pensas. Não continuo cá em casa, não fazemos amor todas as sextas feiras?...”
“Toda a gente fala que andas a me pôr os cornos com o italiano, é mentira?”
“Não continuas a entrar em casa à vontade, alguma vez você bateu com os cornos lá em cima na porta da entrada?...”
“Não goza comigo, se essas feijoadas continuarem, vou cortar um dedo para você pôr lá, assim quando estiverem a comer vai-se lembrar do teu marido e do teu filho, sua cabra.”
“Não me insulta assim, porque senão vou viver com o Vittorio, não volto mais.”
Ao ouvir isto, Bola de Funji ficou como que louco. Com um pulo ágil que espantou a mulher, correu para a cozinha e voltou com uma faca de cortar carne. Julieta olhou-o meio espantada mas continuou a preparar-se, o que o irritou ainda mais.
“Você me chama de frouxo, de parado, pensa que eu não sou capaz?”
“O problema é teu, queres cortar o dedo para pôr na feijoada, corta!...”
Ao ouvir o desafio, Bola de Funji colocou a mão em cima da cómoda e, com um gesto preciso, mutilou-se do dedo mindinho esquerdo, que caiu para o chão. Julieta deu um grito de horror, chamou pelas vizinhas e retirou-se, sem a intenção de voltar. O italiano não era esse selvagem.
Entretanto, na Air France, Vittorio comprava seu bilhete di ritorno, como diria. Acabara o contracto e regressaria dali a dias à sua bela Itália, onde a esposa, já avisada, o esperaria com una bela feidjoada, receita transmitida via fax , com ligeiras adaptações erótico-regionais.